Desagravo à memória de Rosely Roth

quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Míriam Martinho

Desde o falecimento de Rosely Roth, há 34 anos, busquei sempre preservar sua memória através das páginas do boletim e da revista Um Outro Olhar (UOO 12, 15 e 18), incluindo propor o dia do happening do Ferro’s Bar como dia do orgulho lésbico brasileiro também em sua homenagem, em novembro de 2000 (UOO 33), proposta encampada por outras ativistas em 2003. Posteriormente, mantive a lembrança de Rosely presente nas comemorações da data, no livreto sobre o dia do orgulho de 2009, no resgate, em 2019, de sua participação no programa de Hebe Camargo.

Por isso revolta ver hoje sua imagem sendo usada como token de narrativas ideológicas sobre uma suposta perseguição estatal dos militares a gays e lésbicas que teria existido até 1984 (sic), quando de fato, nessa época, estávamos todos lépidos e fagueiros nos comícios das Diretas Já. São fraudes grosseiras que não batem com a história do país, do movimento homossexual do ciclo libertário (78-84) nem com a própria trajetória da moça. Elas também atingem o GALF e o Chanacomchana, mas Rosely tem sido sua principal vítima porque não está mais aqui para se defender. Mas eu ainda estou.

Cumpre  salientar, por exemplo, que Rosely nunca teve qualquer parte na concepção, produção e edição do Chanacomchana. Ela não tinha formação nem vocação jornalísticas, muito menos em artes gráficas, mas foi uma das principais colaboradoras e sobretudo grande divulgadora do fanzine. Nesse caso, ela e o Chana fizeram uma dobradinha: ele permitiu sua visibilidade, e ela a dele. Um casamento feliz enquanto durou. De fato, os fraudadores atribuem a Rosely a criação do Chana para tentar invisibilizar e furtar a verdadeira produtora e editora da publicação que não aceita ver seu trabalho fraudado.

Vale lembrar também que Rosely não foi idealizadora de nenhum levante. Levante é a versão fake e brega do happening do Ferro’s Bar que surgiu na esteira da historieta da suposta perseguição estatal dos militares contra homossexuais. O problema é que o happening, que foi assertivo, mas pacífico e alegre, e terminou em negociação e celebração, não combina com a narrativa "luta armada" que criaram. Até os portugueses grosseiros do Ferro’s viraram agentes da ditadura em pleno 1983, pra se ter uma ideia da picaretagem.

Sobretudo, Rosely não foi nenhuma voz contra a ditadura militar porque se trata de algo cronologicamente impossível. Rosely era uma menina e uma adolescente durante o período ditatorial do regime. Quando os militares chegaram ao poder em 1964, Rosely tinha 5 anos de idade. Quando eles promulgaram o AI-5, o instrumento mais ditatorial do regime, em 68, Rosely tinha 9 anos. Quando eles revogaram o famigerado AI-5, em outubro de 1978, Rosely tinha 19 anos.

A partir de 1979, no governo da abertura do presidente Figueiredo, o Brasil entrou no período da redemocratização, com progressivo e rápido retorno às características do estado democrático de direito (anistia, plupartidarismo, eleições estaduais diretas em 1982, com eleição de governadores da oposição, campanha das Diretas Já, eleição de Tancredo Neves e a transição democrática). Lembrando que a redemocratização segue depois do fim do regime, passando pela aprovação da nova constituição em 1988, e terminando na primeira eleição direta para presidente, em 17 de novembro de 1989, com a vitória de Fernando Collor de Melo. 

E, no início da redemocratização do Brasil, de 1979 até o final de 1981, Rosely estava fazendo graduação em filosofia na PUC-SP e fundando o GALF comigo (outubro/81). Por outro lado, a oposição ao regime militar em seus estertores se dava pela via parlamentar, e Rosely era contra a dupla militância em movimentos e partidos. Esse posicionamento pode ser conferido no texto da Vanda Frias sobre o happening do Ferro’s e o da própria Rosely em Autonomia.

Concluindo, Rosely foi uma moça idealista e batalhadora que não merece ser usada como token por gente que vive de mentiras, roubos e fraudes e visa inclusive vantagens financeiras reescrevendo nossa história. Como se sabe, homenagens verdadeiras não se fazem com profanações das ideias, história e identidade da pessoa homenageada.

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