CCC 10, jun., set. 1986 © Coleção Chanacomchana. Míriam Martinho |
A Revolução DIY |
Sumário Editorial O Mito da opção sexual e a organização lésbica - p.1 Dicas de leitura - p. 5 Poesia - p. 7 Homossexualidade nas leis - p. 8 Depoimento: Patrão a Ferro's - p. 15 Em Movimento - p. 16 Conferência Lésbica em Genebra - p. 20 Entrevista: Assumindo - p. 28 Troca-Cartas - p. 31 |
Editorial (Míriam Martinho)
Montagem sobre poster de O Vento Levou, com base em postcard lésbico dos anos 80 |
Dicas de leitura, p. 5
Poesia era um espaço que eu definia como "para as lésbicas poderem falar de como era bonito, sensual, gostoso e ótimo amar outra mulher." Nesse sentido, sempre busquei trazer poesias de teor romântico e erótico de autoras conhecidas e desconhecidas que apreciavam escrever poesias, mais ou menos elaboradas, atividade pela qual lésbicas sempre tiveram predileção. (Míriam)
Em Apesar dos Pesares, Vânia Garcia fala sobre amainar a dor da separação através de um sono profundo que, no entanto, surge como sono inconformado, sono da perda, do tudo acabado. Um sono que não lhe valia porque não a fazia esquecer a amada, como deveria, o que tornaria tudo mais fácil. Um sono no qual insistia, porém, em abandono, porque cansara de brigar a briga de quem sai perdendo e, apesar de tudo, continua querendo o amor que se foi.
Em Cigana, Marina também reclama da cigana que só por sorte lhe fazia companhia, mas a quem promete abandonar pela moça do lado que se apresenta como um ramo mais fértil de uma geografia que num sonho adivinhava. Um caminho por onde seguiria para não mais voltar às portas tortas e cheias de melancolia da amada errante.
Em Possibilidades, Marina tematiza, ao contrário de em Cigana, o encontro com uma menina corajosa, de olhar às vezes distante, às vezes fatal, com a coragem delicada de viver o tempo dos parques, das palmas, dos tambores. E fala do dardo do amor que a atingiu (ou ao eu lírico) no ombro e a deixou sangrando feliz em uma tarde de provável sábado.
Em Face a Face, Jurema Barreto tematiza um encontro erótico que afrouxa sua coleira, desata o nó do desejo. A faz festejar a mão da amada que alisa seus dedos que crescem como raízes no fundo da terra escura. Louca, na madruga promete calar seu grito trancando-o no armário do banheiro com o perfume predileto da amada e amor indiscreto da poetisa.
Propostas para a constituinte
Dando continuidade a sua preocupação com a constituinte, Rosely lembrava da importância de se votar em candidatos a deputados federais e senadores que pudessem vir a encampar as demandas dos grupos GGB, Triângulo Rosa e Grupo Ação Lésbica-Feminista de inserir a frase "contra a discriminação por preferência ou orientação sexual" na nova constituição. Aqui se nota que ainda havia a discussão sobre os termos opção, preferência ou orientação sexual, acabando esta última por se firmar e as demais entrarem em desuso.
Fusca da polícia apelidado de "baratinha" |
Aberto o inquérito, transfira tudo para a Delegacia da Mulher, aos cuidados da Rose e acredite na Justiça Divina, que essa não falha nunca.
Capas dos boletins do Amazones d'hier, lesbiennes d'aujourd'hui |
Apresentador Blota Júnior |
O primeiro programa foi o do Blota Júnior, apresentador famoso desde os anos 60, que, na TV Bandeirantes, em março, resolveu discutir o tema "a homossexualidade e a constituinte", tendo convidado, para o debate, Rosely Roth, pelo GALF, e o Paulo Bonfim, pelo GAPA, mas também o radialista sensacionalista e homofóbico Afanásio Jazadi (depois também deputado estadual). Embora Rosely e Bonfim tentassem levar a discussão a sério, Jazadi transformou o programa no seu mundo cão costumeiro, desrespeitando os participantes e reforçando estereótipos onde lésbicas virariam homens por se relacionar com mulheres, e gays, mulheres, por se relacionarem com homens. O programa também não permitiu a Rosely mostrar o Chanacomchana nem divulgar a caixa postal do GALF.
Apesar de criticar o enfoque da tolerância do programa da Hebe, pois de fato a homossexualidade deveria ser encarada como algo apenas natural, considerei que, dada à homofobia reinante, ainda era melhor do que nada. Apontei como maiores senões do programa, o fato de terem convidado o cabeleireiro Rudi e sua mãe e só terem deixado que falasse ao final do programa (ele deixou o programa dizendo uns desaforos) e o fato de terem tentando impedir Rosely de divulgar a caixa postal do GALF, mesmo depois das 23:00, quando a censura não teria como chiar.
Em 20 de março de 1986, a cidade de Nova York aprovava projeto de lei contra a discriminação a gays e lésbicas no aluguel de moradias, acomodações públicas e emprego. A chegada da AIDS, apelidada a princípio de câncer gay, peste gay, fez aumentar o preconceito e a discriminação em particular contra os homens homossexuais, e a lei em questão, Intro. 2, veio para possibilitar recurso rápido junto à municipalidade a fim de combater casos de despejo e demissão motivados por heterossexismo.
A nada santa madre Igreja obviamente protestou contra a lei, e eu aproveitei para lembrar da hipocrisia dessa instituição que, embora fale de fraternidade, sempre marginalizou pessoas homossexuais, e, apesar de se dizer defensora da vida, sempre ceifou a de muitas mulheres com sua oposição à descriminação do aborto. Lembrei ainda que a Igreja colaborava com a censura, já que, por sua iniciativa, o presidente José Sarney, havia conseguido censurar o filme Ave, Maria do cineasta franco-suíço Jean Luc Godard.
Interessante observar, nessa nota, como em 1986, os grupos de gays e lésbicas já podiam ser contados nos dedos de uma mão. No caso dos grupos lésbicos, apesar de algumas tentativas, nenhum conseguiu vingar, com exceção do GALF. Os dois grupos gaúchos abaixo foram efêmeros.
Conferência Lésbica em Genebra p. 20 (Míriam Martinho)
A substituição de sexo por gênero abriu o caminho para que homens héteros que se dizem mulheres, porque reproduzem o estereótipo de gênero feminino, pudessem passar também a se identificar como lésbicas e demandar os espaços e a cama das mulheres homossexuais. Essa bizarria pós-moderna pegou carona no antigo movimento pelos direitos de gays e lésbicas para enfiar suas demandas fetichistas inclusive nas leis. O resultado é que as lésbicas foram perdendo seus direitos e espaços a ponto de hoje,
como no tuíte ao lado (ou xuíte), um grupo lésbico australiano ter tido seu direito de se reunir publicamente sem a presença de homens proibido por uma comissão de direitos humanos (sic) - Comissão de direitos humanos australiana - AHRC. Tal atitude fere inclusive um dos princípios básicos da democracia que é o direito de livre associação e reunião. Ninguém tem a obrigação de se reunir com quem não quer.
As perguntas giraram em torno da situação que abriu a consciência das entrevistadas para sua sexualidade, a época de suas vidas em que se deu essa conscientização, os problemas derivados do se assumir, as dores e as delícias de se saber lésbica, a resposta que deram a sua condição recém-encontrada, o que a descoberta da própria sexualidade representou para elas, os aspectos positivos e negativos dessa descoberta e o que pensavam na época da entrevista sobre todo o processo de se assumir.
A entrevistada Rita, que fora casada por 9 anos, afirmou que se assumiu aos 30 (há dois anos da entrevista), embora tivesse sempre sentido atração por mulheres de forma difusa. Foi só, porém, quando se apaixonou por uma mulher especial que o desejo veio a toda e lhe provocou muito conflito. Na época, era-lhe inconcebível que sentisse desejos sexuais por outra mulher. Não aceitava pensar em namorá-la. Mas o desejo superou o medo e bastou uma troca de revelações e o primeiro beijo para resolver todos os seus problemas de cabeça. Para ela, assumir-se representou a liberdade de ser ela mesma, a consciência de sua liberdade íntima e individual. De negativo, apontou os novos problemas a serem enfrentados em relação à família e à sociedade.
A entrevistada Sandra afirmou que se dera conta de ser lésbica aos10 anos de idade quando fazia de tudo para estar perto de certas amigas, arrumando um jeito de criar situações mais íntimas, sentindo ciúmes das coleguinhas. Mas a consciência plena do desejo de amar o corpo de outra mulher se dera há apenas 4 anos da entrevista. E que fora uma época boa para essa descoberta porque estava com a cabeça adulta, madura e forte o suficiente para não se sentir diferente de outras pessoas. Por isso, não teve problemas a resolver devido a sua sexualidade. De negativo no processo de se assumir, citou a consciência do tempo perdido em entender que podia ser feliz sem ser pelas regras ditadas pelos outros. De positivo, citou a descoberta de que o fato de ser mulher não mais a obrigava a ser dependente do sexo masculino, que todos podiam encontrar o prazer e o ideal com quem quisessem. Para ela, depois de tudo, via sua relação como totalmente normal em relação a de tantas outras pessoas.
|
A entrevistada Sílvia descobriu sua atração por mulheres há seis anos da entrevista quando tinha 38 anos, desquitada, com dois filhos adolescentes, e em um segundo casamento também já findo. Apaixonou-se por uma colega de serviço, lésbica, uma pessoa que considerava inteligente e cuja companhia a gratificava muito. Revelou também que essa colega a rejeitou quando tentou "aproximações", acabando por se afastar dela definitivamente. Quatro anos depois, teve outro caso que também não deu certo porque a parceira lhe pareceu muito insegura e possessiva. Para piorar, sua filha de 18 anos percebeu a natureza do relacionamento da mãe e fez pressão para a relação acabar. Após o término do caso, explicou à filha que a relação acabara por não lhe ser prazerosa. E a entrevistada disse que também sofreu com o próprio medo de que as pessoas soubessem e não aprovassem seu estilo de vida. Apesar das experiências negativas, contudo, Sílvia concluiu dizendo que se reconhecer lésbica lhe fizera bem, pois o desejo e afeto por mulheres faziam parte de sua personalidade, mas estiveram por muito tempo reprimidos. Ter se conscientizado ampliara sua vida, fizera-lhe amadurecer bastante, permitira-lhe se compreender melhor e aos outros.
Para um bom papo, aquela transa, um grande amor
Neste troca-cartas, 24 mulheres buscaram trocar cartas com outras em SP e no Brasil e até no exterior. Foram 13 de São Paulo (capital e interior), 4 do RS, 2 da Bahia, e uma de dos seguintes estados: MS (Campo Grande), RJ , DF (Brasília), MG (BH) e Iowa (EUA).
A novidade dessa edição do TC foram os anúncios mais personalizados, com indicações de passatempos e o tipo de contato que as anunciantes queriam, se para compromisso, amizade, transa.
Incrível o cuidado e amor que vc tem manter a memória lésbica. Um respiro realmente.. ando muito triste com o estado atual das coisas. Sinto que nem no chamado "Movimento lésbico" podemos ser lésbicas em paz, a presença masculina, seja lá por qual pretexto escrito com grandes e vazias palavras consigam inventar a cada ano, está cada vez mais intensa. Lésbicas ostracizam outras lésbicas pelo fato de nos recusarmos a ceder ao imperativo masculino...assim, é desesperador. Me dá até uma nostalgia de um passado no qual eu nem tinha nascido (sou de 1992) ler esse post.
ResponderExcluirObrigada pelo comentário. Resgato os Chanas e a memória lésbica, por seu meu trabalho e minha história, mas também para fazer uma ponte entre o passado do movimento, bem melhor para as lésbicas, e essa atualidade distópica. Para que as lésbicas saibam que foi diferente e pode voltar a ser. Há luz no fim do túnel. Um abraço e força.
ResponderExcluir