Em dezembro de 1982, era lançado o primeiro número do boletim Chanacomchana seguido de outros 11 números (ver resgate do CCC 1 aqui, CCC2 aqui, CCC 3 aqui, CCC 4 aqui, CCC 5 aqui, CCC6 aqui, CCC 7 aqui, CCC 8 aqui, CCC 9 aqui, CCC 10 aqui, CCC 11 aqui). Neste artigo, abordo o ChanacomChana 12, não sem antes falar do contexto histórico e político de onde o periódico emerge, fundamental para entender sua produção e conteúdo (ver mais informações em Memória Lesbiana: 41 anos de ChanacomChana e aqui).
O Grupo Ação Lésbica-Feminista (GALF) e sua primeira publicação, o boletim Chanacomchana, nascem durante o primeiro ciclo do MHB (Movimento Homossexual Brasileiro) também chamado de ciclo libertário (78-83/84) porque nele prevaleciam as ideias da Contracultura, aquele grande guarda-chuva de movimentações e movimentos socioculturais e comportamentais que se inicia já nos anos 50, percorre as décadas de 60 e 70, terminando no início dos anos 80. Retomando elementos do anarquismo e do romantismo, a Contracultura vai priorizar a revolução individual, politizando o cotidiano e as inter-relações humanas (o privado é político) e retomando a máxima gandhiana de que as pessoas tinham que se tornar a mudança que queriam ver no mundo. Não havia interesse na tomada de poder do Estado, objetivo dos partidos políticos, mas sim na revolução molecular dos grupos discriminados e oprimidos que unidos superariam a incompetência da América católica e seus ridículos tiranos (Enquanto os homens exercem seus podres poderes, índios e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes fazem o carnaval - Caetano Veloso).
Na prática, os grupos daquele incipiente movimento se preocupavam com a não reprodução da política tradicional, suas hierarquias, disputas de poder, discursos da boca para fora, e tentavam (com pouco sucesso) não reproduzir suas mazelas. Nesse sentido também, pregavam a autonomia dos movimentos sociais em relação aos partidos políticos, uma das bandeiras de maior bom senso daquela época. O GALF era tributário dessas ideias (vide o texto Autonomia), via esquerda libertária, das ideias do feminismo de segunda onda, com seu questionamento dos papéis sexuais, e das correntes do separatismo lésbico do também incipiente movimento lésbico internacional.
A Revolução DIY |
Todo esse amálgama de ideias e inspirações aparecem nas páginas do Chanacomchana do seu período inicial e nele permanecem no período posterior, de 1985 em diante, apesar do afã revolucionário contracultural do MHB ir sendo paulatinamente substituído pelo reformismo pragmático de grupos como o GGB e o Triângulo Rosa.
Também do ponto de vista gráfico, o CCC vai seguir a ética e a estética contracultural do "Do It Yourself - DIY" (Faça você mesmo) matriz, entre outras produções, dos fanzines produzidos artesanalmente, com colagens e mistura de tipos gráficos, e, no conteúdo, com uma miscelânea de textos políticos, tirinhas, desenhos, poesias, depoimentos, notícias e app arcaico de namoro (o Troca-cartas). Nas vendas, o corpo a corpo junto ao público-alvo ou, posteriormente, via correios através do sistema de associação.
Nem o GALF nem o ChanacomChana refletem qualquer luta contra a ditadura militar mesmo porque seu contexto histórico é o do governo da abertura do general Figueiredo, da redemocratização, que se iniciara com a revogação do AI-5 em 13/10/78, ainda sob o governo Geisel. De fato, o governo Figueiredo foi uma democratura, uma convivência de elementos ainda autoritários do regime em decomposição com aumento crescente de características democráticas caminhando a passos largos para o restabelecimento do poder civil. Embora a censura, só revogada com a Constituição de 1988, ainda existisse no período, ela não vitimou o GALF ou o ChanacomChana em momento algum. Tal fato pode ser constatado facilmente pela simples leitura dos Chanas onde não se encontram sequer informes referentes ao regime militar, muito menos registro de qualquer arbitrariedade que tenhamos sofrido dos militares. O GALF e suas publicações foram, de fato, insurgências contra a ditadura da heterossexualidade obrigatória praticamente onipresente do período.
Chanacomchana nº 8 – Edição comentada
Sumário GALF 6 Anos - p. 1 Origem da Denominação Lésbica-feminista - p. 2 O GALF e o feminismo lésbico - p. 3 Objetivos e atividades do GALF - p.4 Dicas de Leitura - p. 5 Poesia - p. 6 GALF na Hebe - p. 7-11 Uma História de Heterror: Preconceito no CVV- p.12 Ideias Particulares sobre Papeis Sexuais no Lesbianismo - p-14-15 Associe-se ao GALF - p. 15 Informes - p. 16-18 Lésbicas e Trabalho - p. 19-25 Troca-cartas - p - 25 |
GALF: 6 anos - p. 1 (Míriam Martinho)
1985 - Um divisor de águas para o GALF e o Chana
Na resenha da edição 7 do Chana, salientei que o ano de 1985 foi um divisor de águas para o GALF e o Chana, iniciando um processo de afastamento gradual do movimento feminista (o texto Uma História de Heterror da edição 7 exemplifica um dos porquês disso) e uma depuração da identidade do grupo que, ao final do ano, irá se desvencilhar finalmente da ligação simbólica com o coletivo que o precedeu (Grupo Lésbico-Feminista -05/79-06/81).
De fato, o Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF) nasce, em outubro de 1981, como um rescaldo do Grupo Lésbico-Feminista, ou Grupo de Ação Lésbico-Feminista (uma outra de suas assinaturas mais recorrentes). Esse coletivo surge como subgrupo do grupo Somos, em maio de 1979, torna-se oficialmente independente do Somos como Grupo Lésbico-Feminista um ano depois, em maio de 1980, sofre um racha em outubro de 1980, quando perde duas de suas destacadas ativistas, e tem uma sobrevida de uns 8 meses, diluindo-se em junho de 1981, paradoxalmente quando uma de suas ativistas encontrara uma sede para o coletivo. Parte de suas integrantes ou deixou a militância ou aderiu ao movimento feminista, em particular ao grupo SOS Mulher, onde puderam manter o clima de socialização (e pegação) que caracterizava o lésbico-feminista (LF), sacrificando, contudo, a politização da questão lésbica (o mantra do SOS era submergir a identidade lésbica na identidade feminista). Apenas duas remanescentes desse coletivo, que nele atuaram em momentos diferentes de sua efêmera trajetória, eu e Rosely Roth, decidimos continuar com o ativismo especificamente lésbico, reavivando as brasas sob as cinzas do grupo lésbico-feminista e lhe dando outra sobrevida simbólica ao incorporarmos seu breve histórico ao do recém-nascido GALF, como as réstias de um sentimento que insiste em perdurar.
Este texto GALF: 6 anos é o último em que mantenho essa relação simbólica entre os dois coletivos sobre a qual a dura realidade finalmente se impôs. A ficha que já vinha caindo aos poucos, pois, de fato, nunca houve real continuidade entre os citados coletivos, caiu de vez durante o III Encontro Feminista Latino-Americano e do Caribe, em Bertioga, onde nos encontramos com ex-integrantes do lésbico-feminista numa reunião lésbica que improvisamos com o Grupo de Autoconciencia de Lesbianas Feministas (GALF do Peru). O desinteresse dessas ex-integrantes do LF por qualquer atuação específica por e para lésbicas, seu acomodamento no armário feminista da época (uma depois viria a dizer inclusive que não se podia organizar lésbicas no Brasil), nos trouxe a consciência de que nem simbolicamente tínhamos de fato mais nada em comum com o citado coletivo que justificasse continuar agregando-o ao histórico do GALF. Embora possa soar um clichê, de fato com o passado aprendemos, mas devemos deixá-lo passar.
Neste texto, o histórico dos dois coletivos ainda vem misturados, mas é fácil separá-los. Todas as atividades até junho de 1981 são do grupo lésbico-feminista. As do GALF veem a partir do segundo semestre de 1981, em particular depois de outubro. Mais detalhes sobre o coletivo lésbico-feminista podem ser lidos aqui. Sobre o GALF, seu longevo histórico pode ser lido aqui
Origem da Denominação Lésbica-Feminista, p. 2 (Míriam Martinho)
Neste texto apresento o porquê de o GALF ter se adjetivado como "ação lésbica-feminista". Antes de tudo, destaco que o GALF, a partir de março/abril de 1983, passou a adotar a denominação "grupo ação lésbica-feminista", eliminando o "de" dessa identidade. Minha intenção com essa decisão foi forçar a concordância com "ação" e não com "grupo". Geralmente, quando se utilizava "grupo de" a tendência era que as pessoas concordassem tudo no masculino, ficando "grupo de ação lésbico-feminista". Com a retirada da preposição, a concordância passava a ser com ação, ficando Grupo Ação Lésbica-Feminista, "ação lésbica-feminista" se tornando o nome do grupo. A estratégia teve bons resultados, diga-se de passagem. Por isso, falo, neste texto, sobre a origem da denominação lésbica-feminista, criada para ressaltar a dupla opressão das lésbicas como mulheres e mulheres de orientação homossexual.
Saliento que a gente preferia não se identificar como homossexual por causa da ligação da palavra com uma patologia (criada por sexólogos e psicanalistas), o homossexualismo, ou inversão, associada à ideia de um suposto terceiro sexo do qual faríamos parte com os gays.
Destaco que, no caso das lésbicas, a categoria homossexual surgira para supostamente explicar por que algumas mulheres sentiam tão forte necessidade de serem independentes dos homens e do papel de passividade, docilidade, feminilidade que eles lhes impunham. Assim o procediam, segundo os especialistas, porque não seriam mulheres normais e sim um terceiro sexo.
Lembro que tanto o movimento feminista (de segunda onda) quanto o então movimento gay, nos anos 60, vão questionar a noção da heterossexualidade como a única sexualidade possível para os seres humanos e a própria noção patriarcal do que é ser homem e mulher calcada na dominação das mulheres pelos homens. E que os grupos lésbicos-feministas vão se diferenciar dos outros grupos lésbicos por entender que a opressão das lésbicas só podia ser entendida e resolvida, em sua complexidade, dentro do contexto da opressão de todas as mulheres e não apenas pela questão da homofobia.
O GALF e o feminismo lésbico, p. 3 (Míriam Martinho)
O chamado "lesbianismo político" foi uma das fontes de inspiração do GALF não no sentido de propor que todas as mulheres se tornassem lésbicas, porém na perspectiva de apontar a lesbianidade como mais do que uma mera preferência sexual, como um estilo de vida que permitia maior autonomia e autodeterminação para as mulheres em geral.
No texto eu exemplifico as vantagens que a lesbianidade oferecia em relação ao modelo heterossexual e de como ela, para nós, representava uma maneira nova de ser mulher, sem a tutela e a repressão feminina, sem a reprodução dos estereótipos sexuais de feminino e masculino e o padrão patriarcal de dominação e exploração de uns sobre os outros. Termino dizendo que, portanto, a própria palavra lésbica significava mais do que transa entre mulheres. Significava também uma mulher comprometida com a luta das mulheres por direitos, autonomia e autodeterminação.
Passados 38 anos deste texto, eu ainda o endosso, embora considere necessário adicionar-lhe outros ângulos. Vivemos numa sociedade que, mesmo no Ocidente, onde os direitos das mulheres e de gays e lésbicas obtiveram muitos avanços, ainda tem a heterossexualidade, não como uma simples variante da sexualidade humana, mas sim como uma norma a ser seguida por todos. Inclusive vemos hoje um grande retrocesso nesses direitos vindo não só da direita conservadora, mas da própria esquerda que, metida em ideologias pós-modernas, não defende mais os direitos do sexo feminino nem dos homossexuais.
No contexto de tal sociedade heteropatriarcal, onde as mulheres ainda são criadas para servir aos homens, a lesbianidade continua sendo sim mais do que uma orientação sexual, também um fator disruptor desse sistema. Basta pensar que, se apenas metade de mais da metade da população humana, que é feminina, deixasse de se relacionar com homens, dificilmente o sistema atual se manteria o mesmo. É a autonomia sexual e reprodutiva das lésbicas que faz tremer as bases dessa sociedade.
Por outro lado, lésbicas, ainda que contingencialmente ameaçadoras para o status quo, como indivíduas criadas nesta sociedade heteropatriarcal, sofrem da mesma socialização que leva pessoas a reproduzir estereótipos de gênero, sexismo, racismo e tantos outros "ismos" baseados nas relações de dominação e exploração de uns sobre os outros típicas do mundo em que vivemos. Essas reproduções, na prática, acabam se contrapondo ao poder disruptor da lesbianidade como produtora de relacionamentos onde o parasitismo masculino não vigora.
Nesse sentido, há que se equilibrar a necessária análise coletiva e estrutural com a análise individual para uma compreensão mais profunda do lugar das lésbicas neste mundo de homens. A homossexualidade, apesar de em si mesma ser só uma variante da sexualidade humana, no contexto social da heterossexualidade obrigatória, permanece uma grande pedra no sapato do patriarcado. Haja vista a nova cura gay do transgenerismo, um reacionarismo profundo que se traveste de progressista. É preciso a um tempo conscientizar sobre a opressão coletiva que se abate sobre todas as pessoas do sexo feminino, mas sempre também considerar como cada pessoa age enquanto indivíduo, reconhecendo suas responsabilidades pessoais sobre sua própria vida e da sociedade em geral.
Passados 38 anos deste texto, eu ainda o endosso, embora considere necessário adicionar-lhe outros ângulos. Vivemos numa sociedade que, mesmo no Ocidente, onde os direitos das mulheres e de gays e lésbicas obtiveram muitos avanços, ainda tem a heterossexualidade, não como uma simples variante da sexualidade humana, mas sim como uma norma a ser seguida por todos. Inclusive vemos hoje um grande retrocesso nesses direitos vindo não só da direita conservadora, mas da própria esquerda que, metida em ideologias pós-modernas, não defende mais os direitos do sexo feminino nem dos homossexuais.
No contexto de tal sociedade heteropatriarcal, onde as mulheres ainda são criadas para servir aos homens, a lesbianidade continua sendo sim mais do que uma orientação sexual, também um fator disruptor desse sistema. Basta pensar que, se apenas metade de mais da metade da população humana, que é feminina, deixasse de se relacionar com homens, dificilmente o sistema atual se manteria o mesmo. É a autonomia sexual e reprodutiva das lésbicas que faz tremer as bases dessa sociedade.
Por outro lado, lésbicas, ainda que contingencialmente ameaçadoras para o status quo, como indivíduas criadas nesta sociedade heteropatriarcal, sofrem da mesma socialização que leva pessoas a reproduzir estereótipos de gênero, sexismo, racismo e tantos outros "ismos" baseados nas relações de dominação e exploração de uns sobre os outros típicas do mundo em que vivemos. Essas reproduções, na prática, acabam se contrapondo ao poder disruptor da lesbianidade como produtora de relacionamentos onde o parasitismo masculino não vigora.
Nesse sentido, há que se equilibrar a necessária análise coletiva e estrutural com a análise individual para uma compreensão mais profunda do lugar das lésbicas neste mundo de homens. A homossexualidade, apesar de em si mesma ser só uma variante da sexualidade humana, no contexto social da heterossexualidade obrigatória, permanece uma grande pedra no sapato do patriarcado. Haja vista a nova cura gay do transgenerismo, um reacionarismo profundo que se traveste de progressista. É preciso a um tempo conscientizar sobre a opressão coletiva que se abate sobre todas as pessoas do sexo feminino, mas sempre também considerar como cada pessoa age enquanto indivíduo, reconhecendo suas responsabilidades pessoais sobre sua própria vida e da sociedade em geral.
Objetivos e atividades do GALF, p. 4 (Míriam Martinho)
Finalizando o artigo, elenco os objetivos do grupo: conscientizar as lésbicas sobre seus direitos, formar redes de contatos e troca de informações com lésbicas e ativistas lésbica do Brasil e do exterior, promover debates, exibir filmes e vídeos, organizar a biblioteca do GALF.
E descrevo suas atividades: reuniões de reflexão semanais, elaboração do boletim Chanacomchana, participação em debates, simpósios, palestras, etc. e manutenção de correspondência com lésbicas de todo o Brasil.
E descrevo suas atividades: reuniões de reflexão semanais, elaboração do boletim Chanacomchana, participação em debates, simpósios, palestras, etc. e manutenção de correspondência com lésbicas de todo o Brasil.
Dicas de Leitura, p. 5 (Míriam Martinho)
Lista de livros que o GALF vinha adquirindo para sua biblioteca.
Lista de livros que o GALF vinha adquirindo para sua biblioteca.
Poesia, p. 6
Poesia era um espaço que eu definia como "para as lésbicas poderem falar de como era bonito, sensual, gostoso e ótimo amar outra mulher." Nesse sentido, sempre busquei trazer poesias de teor romântico e erótico de autoras conhecidas e desconhecidas que apreciavam escrever poesias, mais ou menos elaboradas, atividade pela qual lésbicas sempre tiveram predileção. |
Nesta edição, trouxe a prosa poética de Margot intitulada Desesperança descrevendo um encontro, ou encontros eróticos, que a arrebataram (ou a seu eu lírico). A descrição da amante com quem trocou nomes no primeiro encontro:
Seu porte de rainha - esbelto - corpo esguio, cabelos longos, castanhos, mãos fortes, macias, boca de pele macia avermelhada e sorriso lindo, voz traiçoeira, feiticeira, "olhos que olhavam", costas de ombros largos que não deixavam seus sonhos fenecerem.
Afirmava querer tudo que aquelas mãos e dedos lhe ofertavam em termos de prazer e ainda mais. Queria o que aquela boca macia e aquele sorriso lindo lhe extraíam:
Afirmava querer tudo que aquelas mãos e dedos lhe ofertavam em termos de prazer e ainda mais. Queria o que aquela boca macia e aquele sorriso lindo lhe extraíam:
Confessava que a voz traiçoeira e feticeira da amante iluminavam os azuis do seu céu, do seu mar. Que seus olhos que buscavam e vasculhavam varreram as entranhas do seu eu enquanto também desnudavam a si mesma, mas que a autora, sempre jogadora inveterada, não soubera pagar para ver.
De repente, o raio laser das duas" se apagou por falha técnica.
De repente, o raio laser das duas" se apagou por falha técnica.
GALF na Hebe, p. 7 (Rosely Roth)
Lésbicas x Censura
Folha da Tarde, 30/31/05-01/06/85 |
Rosely relata que, nas conversas de bastidores do programa, a maioria dos outros convidados não sabia que a temática da noite era o lesbianismo (nos termos de então). De fato, estavam ali para divulgar livro (Ignácio de Loyola Brandão), peça teatral (Maria Lúcia Dahl), programa de TV (Maria Gabriela) e dar palpite no que viesse. E que ninguém sabia, de antemão da participação da mãe de uma garota lésbica, a dona Maria Amélia Rocha de Souza, a quem, segundo Rosely, foi dado muito mais tempo para falar do que todos os demais. De fato, dona Amélia teria abocanhado 60% do espaço do programa, com discurso para lá de heterossexista, como dizer que preferia a filha infeliz com um homem do que feliz com uma mulher.
Rosely relatou haver falado bem menos do que gostaria (só quando a Hebe abriu o microfone para ela) mas que conseguira mostrar o Chana na TV e dar a caixa postal do grupo duas vezes. E que a lesbofobia da dona Amélia acabou se voltando contra ela própria, pois começou bem aplaudida no começo de suas falas, e acabou quase vaiada no final do programa em função de seu discurso rancoroso e autoritário.
Termina o texto falando da repercussão do debate na imprensa e da reação do chefe de censura federal de São Paulo (lembrando que a censura só termina com a constituição de 1988), Dráusio Dornellas Coelho, que exigiu que a produção do Hebe elevasse a faixa etária do programa e que o gravasse previamente. Segundo ele, o programa teria feito apologia do lesbianismo, principalmente por ter permitido a Rosely mostrar o Chanacomchana e falar a caixa postal do grupo.
Aborda por fim a repercussão do programa junto às lésbicas da época informando que, em julho de 1985, o GALF já havia recebido mais de 200 cartas de todo o Brasil, muitas identificando suas mães com a autoritária Maria Amélia.
Termina o texto falando da repercussão do debate na imprensa e da reação do chefe de censura federal de São Paulo (lembrando que a censura só termina com a constituição de 1988), Dráusio Dornellas Coelho, que exigiu que a produção do Hebe elevasse a faixa etária do programa e que o gravasse previamente. Segundo ele, o programa teria feito apologia do lesbianismo, principalmente por ter permitido a Rosely mostrar o Chanacomchana e falar a caixa postal do grupo.
Aborda por fim a repercussão do programa junto às lésbicas da época informando que, em julho de 1985, o GALF já havia recebido mais de 200 cartas de todo o Brasil, muitas identificando suas mães com a autoritária Maria Amélia.
Uma História de Heterror: Preconceito no CVV, p.12 (Shirley Roth)
Depoimento de Shirley Roth, irmã de Rosely, sobre sua má experiência como atendente do Centro de Valorização da Vida (CVV), da Barra Funda, onde a família Roth morava em 1985.
Shirley sofria de síndrome dos ovários policísticos o que a fazia ter barba. Isso somado a uma aparência bastante masculinizada (fanchona) no geral, a tornava uma bandeira ambulante. Hoje poderia ser lida como um "homem trans", mas em 1985, ela se definia como homossexual simplesmente (não havia identidades trans na década de 80):
Shirley disse que em sua interação com outros plantonistas procurou mostrar que pessoas homossexuais eram normais, como ela e a companheira, aparecendo em festas do trabalho com sua mulher e o filho das duas ou mesmo em reuniões do CVV. Apesar da boa receptividade de algumas pessoas, no geral, Shirley relatou um certo monitoramento de seu desempenho nos plantões, como se buscassem algum deslize para condená-la. Até que começou a rolar um rumor de que ela cantaria mulheres nos atendimentos, rumor que chegou aos ouvidos do Chefe Nacional do CVV que se reportou à coordenadora do CVV Barra Funda. A coordenadora, Ana, abordou Shirley relatando que estavam dizendo que havia uma homossexual pervertendo atendidos pelo telefone e transformando o CVV Barra Funda num bordel telefônico. Shirley protestou e disse que, de fato, quem cantava atendidos eram seus colegas heterossexuais, inclusive marcando encontros, etc.
A Opinião da Leitora, p. 12 (Roxana Herrera Álvarez)
Ideias Particulares sobre Papéis Sexuais no Homossexualismo Feminino (Roxana Herrera Álvarez)
Butches and femmes Corky e Violet em “Ligadas pelo Desejo” (Imagem: reprodução) |
Este é um dos poucos textos publicados no CCC onde a autora assinou seu nome por extenso. Nele, Roxana discorre sobre a temática dos papéis sexuais nos relacionamentos entre mulheres. Vale salientar, como comentei em outras resenhas do CCC, que nem os termos gênero nem papeis de gênero circulavam em meados da década de 80. A maioria das pessoas utilizava a expressão "papel sexual", muito mais precisa do que "gênero".
Embora tenha dito que os textos publicados nessa seção não traduziam necessariamente a posição do GALF, o fato é que este particular traduzia sim. Roxana vai questionar a pseudo naturalidade dos papeis sexuais tanto quanto eu mesma havia feito em "Roberta Close: Homem ou Mulher"? Os papeis sexuais, hoje papeis de gênero, são um amontado de convenções sociais, agrupadas e amoldadas para configurar os modelos de mulher e homem na sociedade patriarcal. Suas características estão presentes em todos os seres humanos, as variações por conta das individualidades, não por conta dos sexos.
Embora tenha dito que os textos publicados nessa seção não traduziam necessariamente a posição do GALF, o fato é que este particular traduzia sim. Roxana vai questionar a pseudo naturalidade dos papeis sexuais tanto quanto eu mesma havia feito em "Roberta Close: Homem ou Mulher"? Os papeis sexuais, hoje papeis de gênero, são um amontado de convenções sociais, agrupadas e amoldadas para configurar os modelos de mulher e homem na sociedade patriarcal. Suas características estão presentes em todos os seres humanos, as variações por conta das individualidades, não por conta dos sexos.
A autora também vai dizer que acredita nas relações homossexuais como uma via de mais flexibilidade e criatividade nos relacionamentos humanos com as pessoas intercambiando os papeis sexuais na cama ou no dia a dia. E que, diferentemente dos casais heterossexuais, lésbicas não precisariam ficar confirmando sua aderência à rigidez desses papéis.
De fato, as relações homossexuais, de gays e de lésbicas, tendem a ser mais horizontais realmente porque o casal é formado por duas pessoas que receberam o mesmo tipo de socialização, havendo, portanto, menos cobranças a priori de adequação a papeis X ou Y. O que não significa que essas relações não possam padecer de outros perrengues presentes em todos os relacionamentos humanos e serem inclusive também tóxicas. Ainda que não se deva esquecer o coletivo, o fato é que cada casal é fruto de dois indivíduos e sua combinação pode ser positiva ou não.
Associe-se ao GALF, p. 15
Como disse na resenha do Chanacomchana 7, o ano de 1985 foi um divisor de águas na história do grupo e de sua primeira publicação. Esta edição n. 8 é a última em que o GALF incorpora o histórico do coletivo que o antecedeu, o Grupo Lésbico-Feminista, com quem mantinha uma ligação simbólica sobre a qual a dura realidade acabou por se impor.
Também, como já dito, foi o início do progressivo distanciamento do grupo do movimento feminista por essa relação ser muito contraproducente. E ainda o ano que o grupo inicia seu processo de associação, com o qual pretendia ter mais suporte financeiro em troca de alguns serviços. O processo de associação vai ser fundamental para a sustentação do segundo título que produzi pelo GALF, o boletim Um Outro Olhar, a partir do final de 1987.
Também, como já dito, foi o início do progressivo distanciamento do grupo do movimento feminista por essa relação ser muito contraproducente. E ainda o ano que o grupo inicia seu processo de associação, com o qual pretendia ter mais suporte financeiro em troca de alguns serviços. O processo de associação vai ser fundamental para a sustentação do segundo título que produzi pelo GALF, o boletim Um Outro Olhar, a partir do final de 1987.
Informes - p. 16 (Míriam Martinho)
Simpósio sobre Homossexualidade feminina (p. 16)
Registro de um simpósio de um dia sobre homossexualidade feminina, considerado como provavelmente o primeiro do gênero no Brasil, ocorrido no dia 18/05/85, no Centro de Convenções Rebouças, organizado pelo Centro de Estudos da Sexualidade Humana, coordenado por Moacir Costa e Ronaldo Pamplona da Costa. Foram abordados diferentes aspectos da lesbianidade.
Após a expulsão do CIM, nós tentamos obter apoio para uma nova sede, mas só conseguimos verba para alugar uma sala para a realização do evento Vivências Lésbicas onde apresentamos vídeo de um filme sobre o amor entre mulheres e o programa da Hebe Camargo do qual Rosely participou em 24/05/85 (ver relato acima).
Notinhas
Endereço do Grupo de Prevenção a AIDS (GAPA-SP) para quem quisesse obter mais informações sobre a síndrome que naquele início da epidemia foi chamada de "peste gay" e "câncer gay".
Informe sobre o material do extinto grupo Outra Coisa que foi doado para o Arquivo Edgard Leuenroth da UNICAMP.
III Encontro Latino-Americano e do Caribe (p. 17)
Faço um apanhado desse encontro na próxima edição do CCC. Ele teve pontos importantes na mudança de rumos do GALF seja porque nos permitiu ter contato direto com outro grupo lésbico latino-americano, o também GALF do Peru, seja porque determinou o fim da ligação simbólica que o grupo tinha com seu predecessor o Grupo Lésbico-Feminista. A década de 80 teve prevalência de grupos lésbicos-feministas no incipiente movimento lésbico internacional, daí essa denominação aparecer nos títulos de vários grupos.
Vitória do Movimento Homossexual (p. 17) Finalmente, em 9 de fevereiro de 1985, o Conselho Federal de Medicina, deixou de aplicar o código 302.0 da Classificação Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde (OMS) que colocava a homossexualidade como desvio e transtorno sexual. A partir desta data a homossexualidade passou a ser tratada como uma das circunstâncias psicossociais, ao lado de desemprego, desajustamentos sociais e tensões psicológicas que podiam levar alguém a um médico (código 2062-9). Derrubar este código foi uma das primeiras bandeiras do movimento homossexual do período, por iniciativa do Grupo Gay da Bahia, em meados de 1981, a qual o GALF deu todo o apoio. |
8으 Encontro do Serviço de Informação Lésbica Internacional (ILIS) em Genebra (p. 18)
Informe sobre o mais internacional dos encontros do ILIS, previsto então para março de 1986. As organizadoras do evento, do grupo suíço Vanille-Fraise, buscavam então financiamento para bancar os custos de viagem de lésbicas da América Latina, África e Ásia e os custos do próprio evento na cidade dos bancos, chocolates, queijos e relógios. Também vinhos. Fui agraciada por um desses financiamentos e descrevi o encontro no ChanacomChana 10.
Um caso de custódia lésbica (p. 18)
Nota sobre problemas de custódia de filhas de casais lésbicos nos EUA, numa época (1985) em que as americanas já estavam tendo acesso à inseminação artificial, mas ainda tinham que lutar na justiça para garantir a parentalidade. Vale lembrar que neste ano de 2023, na Itália, sob o governo da direita ultraconservadora da primeira-ministra Giorgia Meloni, casais do mesmo sexo que não possuem ligação biológica com a criança perderão o direito legal à parentalidade.
Entre em contato conosco (p. 18)
Os marcos de fundação do Movimento Homossexual no Brasil são o jornal Lampião da Esquina e o grupo Somos, ambos de 1978. O grupo Somos se inicia como um grupo de amigos gays que buscava um espaço diferenciado dos de pegação de bares e boates para discutir suas questões específicas e amenizar a solidão. Em fevereiro de 1979, o grupo aceita um convite para participar de um debate sobre homossexualidade na Ciências Sociais da USP, tornando-se conhecido, e a partir daí passa a crescer exponencialmente. Durante os anos de 79 e 80, o movimento cresce e se espalha para outras cidades de outros estados, organizando um primeiro encontro nacional em abril de 1980 (Iº Encontro Brasileiro de Homossexuais). No entanto, em meados de 81, época em que deveria ter realizado o II Encontro no Rio, o movimento já mostrava sinais de refluxo que se acentua a partir de 1985. Essa nota demonstra que em meados de 85, os grupos já podiam sem contados nos dedos de uma mão.
Lésbicas e Trabalho, p. 19 (Rute Amorim e Luiza Granado)
Lésbicas e Trabalho foi uma entrevista feita por Luiza Granado e Rute Amorim com duas lésbicas, uma motorista de táxi, Ana, 32, e uma funcionária pública, Renata, 52, abordando suas vivências lésbicas no trabalho. Ana, autointitulada sapatão, demonstrou mais tranquilidade quanto a sua visibilidade como lésbica na profissão. Renata demonstrou mais ambiguidade: embora negasse que se enrustia, não acreditava ser necessário se assumir no espaço de trabalho.
Motorista de táxi, Ana relatou ter sofrido preconceito de uns cinco caras quando estava obtendo o alvará para seu ponto. Eles falaram que não queriam sapatão no pedaço, que ia sujar o ponto, que o passageiro não ia querer pegar o táxi. Depois que obteve o alvará, o coordenador do ponto veio perguntar a ela se era lésbica. Ela confirmou, mas disse que estava ali para trabalhar como todo o mundo, sem extrapolações. Segundo Ana, um ano depois, mesmo os mais incomodados a princípio com sua visibilidade lésbica passaram a aceitá-la, inclusive outras taxistas mulheres, héteros ou entendidas.
Ana afirmou que a autonomia da profissão favorecia sua visibilidade: o carro era dela, trabalhava por conta própria já há 10 anos. Quando trabalhara como funcionária pública, porém, relatou que procurava disfarçar sua orientação sexual para não perder o emprego. Perguntada se achava importante ser assumida no trabalho, afirmou que sim porque quando a pessoa estava sendo "ela mesma", sendo aceita pelos interlocutores como é, tanto faz por dentro ou por fora, não existia coisa mais "de paz".
Sobre como melhorar a situação das lésbicas no trabalho, Ana respondeu:
Funcionária pública, Renata fez um depoimento contraditório, onde, embora dissesse que não se esquivava de abraçar e beijar casos e amantes em qualquer ambiente, na família ou mesmo no emprego, não via o porquê de as pessoas saberem que era lésbica no trabalho, pois tal revelação implicaria uma mudança nas pessoas que seria impertinente e sem objetivo. Para ela, a homossexualidade não dita, só suposta, era admissível, mas quando dita abertamente se tornava imperdoável porque as pessoas não queriam a responsabilidade de saber. Relatou a experiência de desabafar com uma amiga heterossexual sobre a dor da separação de um grande amor, a qual chamou de pessoa, sem revelar que se tratava de uma mulher. A suposta amiga a apoiou até saber a verdade. Após a revelação, a relação das duas se rompeu.
Não obstante, Renata achava que o isolamento das lésbicas ficava muito por conta das próprias devido à culpa que interiorizavam. Considerava importante não exagerar o papel da repressão social como gerador de culpas e um dos fatores mais importantes ou talvez o único a gerar debilidade e depressão. Que viria das próprias lésbicas aceitar sua homossexualidade perante si próprias. Por outro lado, entendia que ninguém tinha uma vivência tranquila da homossexualidade, mas que, apesar de muita culpa e drama, com apoio de outras homossexuais e ativistas, podia-se chegar a bom termo com a própria orientação sexual.
Não obstante, Renata achava que o isolamento das lésbicas ficava muito por conta das próprias devido à culpa que interiorizavam. Considerava importante não exagerar o papel da repressão social como gerador de culpas e um dos fatores mais importantes ou talvez o único a gerar debilidade e depressão. Que viria das próprias lésbicas aceitar sua homossexualidade perante si próprias. Por outro lado, entendia que ninguém tinha uma vivência tranquila da homossexualidade, mas que, apesar de muita culpa e drama, com apoio de outras homossexuais e ativistas, podia-se chegar a bom termo com a própria orientação sexual.
Troca-cartas, p. 25
Numa amostra de como o Chanacomchana foi se tornando nacional, neste troca-cartas, tivemos 14 correspondentes, sendo 8 paulistas e paulistanas, 3 gaúchas, uma mineira, uma amazonense e uma cearense, curiosamente, como observado no CCC 7, com a maioria colocando seu nome por extenso.
CCC 8 nov., dez., jan. 84/85 © Coleção Chanacomchana. Míriam Martinho
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