CCC 4 Set. 83 © Coleção Chanacomchana. Míriam Martinho |
Míriam Martinho
O Grupo Ação Lésbica-Feminista (GALF) e sua primeira publicação, o boletim Chanacomchana, nascem durante o primeiro ciclo do MHB (Movimento Homossexual Brasileiro) também chamado de ciclo libertário (78-83/84) porque nele prevaleciam as ideias da Contracultura, aquele grande guarda-chuva de movimentações e movimentos socioculturais e comportamentais que se inicia já nos anos 50, percorre as décadas de 60 e 70, terminando no início dos anos 80. Retomando elementos do anarquismo e do romantismo, a Contracultura vai priorizar a revolução individual, politizando o cotidiano e as inter-relações humanas (o privado é político) e retomando a máxima gandhiana de que as pessoas tinham que se tornar a mudança que queriam ver no mundo. Não havia interesse na tomada de poder do Estado, objetivo dos partidos políticos, mas sim na revolução molecular dos grupos discriminados e oprimidos que unidos superariam a incompetência da América católica e seus ridículos tiranos (Enquanto os homens exercem seus podres poderes, índios e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes fazem o carnaval - Caetano Veloso).
A Revolução DIY |
Sumário Democracia também para as lésbicas: uma luta no Ferro's Bar, p. 1 a 3 Fazendo Poesia, p. 4 Autonomia, - p.5 Depoimento 3 - Elisete Neres, p. 9 Fim de Caso (entrevista com diretor da peça) - p. 11 A função do homossexual na sociedade - p. 15 Informes - p. 16 Cartas - p. 18 |
O inesperado — ou mais uma artimanha de um dos alegres rapazes da banda — precipita tudo. O boné do porteiro é arrancado e jogado longe. Enquanto ele busca tão importante signo de seu poder, duas mulheres puxam-no para o lado oposto. Aproveitando-se desse inusitado embate, as lésbicas do GALF entram. Uma delas, Rosely, sobe imediatamente sobre uma cadeira e começa a denunciar as atitudes autoritárias do bar.
Alegando que nós estávamos fazendo "arruaça” dentro de tão comportado ambiente, o dono chamou a polícia. Os policiais chegaram, ouviram as argumentações do dono, as nossas, as das lésbicas não militantes que nos apoiam. E estranhamente um deles respondeu que, como deviam ser imparciais, pois os direitos são para todos os brasileiros, não tomariam qualquer atitude contra nós. Puxaram o carro e pudemos jantar em meio às outras lésbicas, como sempre fazemos. Há também dias — ainda raríssimos — que são da caça e não do caçador.
Acostumadas com a narrativa hiperdimensionada sobre a ditadura militar, mesmo às vésperas do fim dela, e a fábula de que os militares tinham política de estado contra homossexuais, não foram poucas as vezes que li e ouvi gente estranhando demais a polícia não ter levado as integrantes do GALF em cana. Fora isso, para corroborar o estranhamento, em maio de 1980, um sensacionalista delegado de polícia, Wilson Richetti, ainda promovera a "operação limpeza" destinada a limpar a cidade de prostitutas, travestis, negros e homossexuais. E, no final daquele ano, na apelidada "operação sapatão", também invadira vários bares do gueto lésbico, incluindo o Ferro's, a fim de levar as sapatas para um tour na delegacia mais próxima.
A militância política de esquerda sempre foi reprimida. Mas sempre compensada pela certeza de se estar lutando por um mundo melhor e de se estar fazendo história. Mas as (os) militantes da esquerda não enfrentam, no seu dia a dia, as dificuldades das lésbicas e das feministas mesmo quando heterossexuais. São olhadas com certo deboche e feridas com agressões verbais por estarem numa luta menor, num combate não-prioritário. Boa parte da esquerda ainda nos olha dessa forma.
São as chamadas "minorias", mais uma palavra que esconde o verdadeiro nome: grupos oprimidos. Nós do GALF queremos ajudar a romper com essa história. Por isso, resolvemos reconquistar o Ferro’s com a ajuda de homens homossexuais, mulheres feministas, ativistas dos direitos civis e militantes ou políticos dos partidos de oposição mais identificados com as lutas das minorias.
Por sermos um grupo autônomo, o GALF é aberto às lésbicas dos mais diferentes horizontes políticos. Ao contrário de alguns outros grupos feministas, o GALF não aceita a chamada dupla militância: isto é, batalhar dentro de um grupo e, ao mesmo tempo, dentro de um partido político. Pensamos que a dupla militância foi um dos principais fatores de enfraquecimento dos grupos feministas dos últimos anos particularmente com as eleições de 1982.
Isso não impede que busquemos ótimas relações com os partidos de oposição — PMDB, PT e PDT — pois nossas lutas se cruzam em alguns pontos essenciais, como é o caso da luta pelas liberdades democráticas. Por isso, fizemos questão de convidar, para o happening político do Ferro’s, a deputada Ruth Escobar (PMDB), a vereadora Irede Cardoso (PT), o deputado federal Eduardo Suplicy (PT) e a bancada do PT na Assembleia Legislativa através de carta endereçada ao líder de sua bancada, Marco Aurélio Ribeiro. Como apoio na área legal, convidamos a advogada Zulaiê Cobra Ribeiro (representante da Ordem dos Advogados do Brasil e da Comissão de Direitos Humanos).Resgate de uma História
Vanda iniciou seu texto descrevendo os primeiros momentos do happening político realizado no Ferro's pelo Grupo Ação Lésbica Feminista. Com o subtítulo "Resgate de uma História", ela terminou o texto falando dos momentos posteriores à entrada no bar e ressaltando mais uma das características da visão libertária e não hierárquica do grupo:
Rosely fez discursos em várias cadeiras. É bom deixar claro que ela não é e não quer ser líder do grupo, pois lutamos contra a hierarquia e o poder; algumas militantes do grupo ainda lutam contra o medo de se exporem publicamente.
Por acreditar nessa democracia, sem lideranças, sem vanguardas e sem elites, é que continuamos a lutar para que todas as lésbicas se expressem e lutem por seus direitos. À maneira de cada uma. Acreditando em nossa autonomia individual, mesmo que participando dos mais diversos grupos.
A militância pela democracia não se restringe aos trabalhadores, seus sindicatos e seus partidos políticos, mas se estende ao cotidiano: às ruas, aos bares, às escolas, ao trabalho, às camas, aos jardins, aos mercados. Em suma, ao dia a dia mais "corriqueiro e banal" de todas(os) cidadãs(ãos).Por fim, Vanda fala da repercussão do happening político para o GALF e do papel das lésbicas na luta pelas mudanças sociais:
A repercussão do “happening” político do Ferro’s abriu espaços sociais para o GALF em dois sentidos. Entre as lésbicas, muitas vieram participar do grupo. As que ainda não querem militar já leem nosso boletim com outros olhos e discutem mais conosco.
Nessa luta em constante movimento e transformação, as lésbicas têm um papel importante a desempenhar. Desde Safo - poetisa grega que fez alguns dos mais lindos versos de amor pelas mulheres e que, vivendo na ilha de Lesbos deu origem a palavra com qual orgulhosamente nos denominamos - as lésbicas não tiveram voz e foram oprimidas. O resgate dessa história, dos versos perdidos em livros malditos, dos beijos que nunca puderam ser dados à luz do dia, do amor que nunca pode ser declarado à amiga com medo de perdê-la para sempre. Tudo isso e muito mais faz hoje nossa alegria de viver e de lutar.
"faça dos teus olhos sempre meu espelho/deixe que a noite traga uma canção/deixe que eu te guarde no meu coração. (Ana Marina)
E eu amando./Você existe./E na minha vida existe seu sorriso, seu jeito, seu tudo.
Ou em versos levemente eróticos e irônicos, como no meu poema Flor de Lírio, já que a flor de lírio, embora também ligada ao romantismo, ao amor puro e inocente, é igualmente usada, em forma de chá, como uma droga potente.
Eu agradeço a você por você ter sabido ser uma grande pedra/Eu agradeço a você por você ter gravado e sangrado a obra/eu agradeço desobrigada e feliz.
Por fim, contrastando com as outras poesias, o poema Máscara, onde a autora lamenta, em boa síntese, a dor de não ter coragem de amar as mulheres que tanto queria amar.
Se Freud e Marx vivessem hoje em dia |
"Abaixo o realismo socialista. Viva o surrealismo."; "Autogestão da vida cotidiana."; "A arte está morta, liberemos nossa vida cotidiana." "Teremos um bom mestre desde que cada um seja o seu".
Esses dois temas, a autonomia dos movimentos sociais em relação aos partidos políticos e o da politização do cotidiano são onipresentes no texto de Rosely e norte do GALF do período. Sobre o tema da autonomia em relação aos partidos políticos, ela vai questionar a chamada "dupla militância", muito comum no movimento feminista do período, mas não tanto no de gays e lésbicas. Interessante observar que a matriz do MHB é puramente contracultural enquanto a do Movimento Feminista do período, embora tingida pelas cores da contracultura, era híbrida, já que muitas de suas pioneiras vinham da esquerda tradicional, inclusive gente remanescente da luta armada. Essas mulheres se alinharam ao PMDB e ao PT da época, e as disputas político-partidárias entre elas travavam o encaminhamento das questões específicas das mulheres. No caso do MHB, houve um rechaço praticamente total aos elementos da Convergência Socialista que tentaram desde os primeiros momentos do movimento atrelá-lo a suas teses e ao incipiente partido dos trabalhadores.
Sobre a dupla militância, Rosely afirma em seu texto:
Existe uma posição, bastante difundida, de que não há nada demais em se estar ao mesmo tempo em um partido e num grupo autônomo e de que uma coisa não exclui a outra. Várias defensoras desta posição acham que estar nos partidos, não as impede de serem "autônomas” e de pregarem a autonomia para o movimento de mulheres. Elas colocam que devemos separar os objetivos do movimento de mulheres daqueles dos partidos aos quais as mulheres se incorporaram. Isto na prática mostrou-se inviável, já que as mulheres se dividem, se enfraquecem por causa das suas posições partidárias, como ocorreu antes e durante as eleições de novembro (isto acontece ainda hoje). Como se daria esta separação entre os objetivos do partido e os do movimento? Nos partidos exercer-se-ia a política tradicional e nos grupos se tentaria questionar esta política e reinventá-la? Outras colocam que se não levarmos para os grupos as posições partidárias, tudo se ajeita. Mas um partido tem um programa e um projeto para quase todas as questões.
Sobre os partidos, a politização do cotidiano e os movimentos sociais como novas formas de fazer política, não apenas como lobbies de reivindicação de direitos para grupos discriminados, ela declara:
A experiência histórica dos países socialistas demonstrou até agora o fracasso dos partidos, da ditadura do proletariado ou sobre este. O que ficou claro é que um canal que reproduz valores opressivos não pode construir uma sociedade não opressiva. [...]
É neste sentido, como consequência desta desilusão, que surgiram os movimentos alternativos em 70. Foi uma desilusão positiva, pois o descrédito quanto aos partidos não gerou alienação, inércia, morgação, mas propostas como a da organização de grupos de mulheres homossexuais e ecologistas: cujas discriminações (juntas com as dos negros), até então tinham sido consideradas menores pela política oficial dos sindicatos e dos partidos legais e clandestinos. Estes grupos tinham, como proposta inicial, procurar reinventar a política. A política tradicional, até então, separava o privado do público: o presidente de um partido poderia se considerar altamente revolucionário e ser um ditador com a mulher e os filhos. (“Aquele que fala de revolução sem mudar a vida cotidiana tem na boca um cadáver” —inscrição de Strasbourg durante maio de 1968.) Uma revolução radical deve começar no nosso cotidiano, já que cada ato executado envolve uma parte da nossa concepção e perspectiva de vida, cada ato pode conter também relações de poder.
Penso que os grupos surgiram como alternativas políticas, tentando não reproduzir em seu meio a política tradicional. Isto significou trazer a questão das mulheres, dos homossexuais, negros e ecologistas, como questões políticas diretamente ligadas aos valores e padrões patriarcais, ao funcionamento opressivo da sociedade. O orgasmo, o prazer, passaram a ser conquistas a serem feitas no dia a dia. A revolução deixou de ser mito, algo para poucos iluminados de uma vanguarda, mas passou a ser algo que deve ser construído no cotidiano.
Outra questão importante é que os partidos visam a tomada do poder. Tomar o poder para exercê-lo de forma diferente. Creio que toda autoridade (título dado a algumas pessoas que, segundo a educação por nós recebida, devem ser respeitadas e aceitas passivamente) é ridícula, mitos de nossas inseguranças, transferências para outro do que nós mesmas podemos fazer e não fazemos. A questão não é tomar o poder e sim dispersá-lo, descentralizar, para que não haja o poder de uns sobre outros. A autogestão política, econômica, social e cultural da sociedade, feita por todos os seus membros. Mas para isso acontecer é necessário que uma grande parte da população acredite na sua própria capacidade de decisão e não delegue a sua vida para outros. Os partidos também são formas de se delegar as coisas.Vale salientar que Rosely era, de todas as integrantes do GALF, a que mais tinha formação libertária, tendo inclusive participado de coletivos anarquistas antes da militância lesbofeminista. Embora me considere libertária até hoje, tanto do ponto de vista moral (desde que não afetem a vida alheia, os indivíduos têm o direito à autodeterminação de suas vidas) quanto político, no aspecto de quanto menos estado mais poder para os indivíduos, não tive participação em grupos anarquistas. Fora isso, o texto de Rosely é pertinente não só como um manifesto político de suas ideias, que não permitem ligá-la à política tradicional muito menos a partidos, como também como um retrato das ideias ainda presentes no movimento homossexual do período. Sem falar que sua visão sobre os partidos permanece atualíssima (ver aqui ou no original). Infelizmente, toda a preocupação com a autonomia do MHB se perdeu progressivamente nos anos 90, com o movimento se descaracterizando e virando inclusive correia de transmissão da velha esquerda.
Obviamente, esse período histórico é totalmente distinto da realidade atual. Naquela época, predominava ainda a mentalidade libertária, inclusive porque estávamos saindo de um regime de exceção, e as palavras de ordem eram "pelas liberdades democráticas", "Diretas Já", pelo fim da censura. Hoje, vivemos às voltas com reciclagens tanto das velhas extremas esquerda e direita e suas ideias mofadas quanto da mentalidade autoritária inclusive entre os movimentos sociais agora pautados nas irracionalidades da esquerda pós-moderna, identitária, e sua fragmentação da humanidade em categorias cada vez mais estanques, em eterno conflito, e numa aversão à liberdade de pensamento, de expressão e até de reunião e associação. Tristes tempos.
No boletim CCC 3, tivemos os depoimentos de Rosely Roth e Célia Miliauskas, este último referido pela autora como peça publicitária do GALF. Neste CCC4, foi a vez de Elisete Neres, recentemente falecida, contar sobre suas idas e vindas ao grupo e sua dificuldade em se assumir como lésbica. E também de convidar outras lésbicas a integrar o grupo sobre o qual tece vários elogios. Interessante observar como a palavra lésbica era estigmatizada naquele período.
Elisete deixou o grupo para tentar se entender com a própria sexualidade.
O afastamento, no entanto, não a ajudou a resolver seus conflitos, e ela retornou ao GALF:
Duro foi se aceitar como lésbica:
Neste número, ressalta-se a mudança de mentalidade da sociedade brasileira sobre a homossexualidade que começa a não ser mais vista como doença.
Saúde das Lésbicas
Debate na Associação Paulista de Medicina (APM)
Debate com a Associação dos Sociólogos do Estado de São Paulo (ASEP)
Em 13 de agosto, integrantes do GALF (6) e do Outra Coisa (2) participaram do debate "Discriminação e Violência", na USP, promovido pela ASEP. Como saldo, a coordenadora do debate Tereza de Augusto Marques Porto se comprometeu a aprofundar os pontos debatidos junto à associação e a passar a chamar as ditas minorias pelo verdadeiro nome: grupos discriminados.
Registro da nota do jornal feminista Mulherio sobre a manifestação do Ferro's Bar e sobre carta do GALF, respondendo a texto preconceituoso de Marta Suplicy, intitulado Gay Feminino que foi publicada na edição de 04 de setembro de 1983 do Suplemento Feminino da Folha de São Paulo.
Grupo de gays negros ligados ao Grupo Gay da Bahia (GGB) que informava sobre encontro que pretendia organizar em Salvador, em outubro de 1983, para discutir a crise do MHB. Nessa nota, eu informo que seria melhor o encontro ser adiado para janeiro de 1984, época de férias, o que possibilitaria a ida de mais integrantes do GALF e do Outra Coisa para o evento. Como já disse em vários resgates que venho fazendo da história do movimento, a partir da perspectiva da organização lésbica, o MHB que começara tão promissor, a partir de 1979, começa a declinar já em meados de 81 e foi minguando a ponto de os grupos poderem ser contados nos dedos de uma mão até 1985. Em São Paulo, o canto do cisne do ciclo libertário será a manifestação do Ferro's que reuniu, pela última vez, remanescentes do Somos. inseridos no GALF, Outra Coisa e no Somos pós-racha. Logo em seguida o SOMOS fecha as portas e, no início de 84, também o Outra Coisa.
Pintando um novo grupo
Nas cartas dos leitores, duas se destacam pelos dados históricos que apresentam.
Primeira, a de Huídes, integrante do GGB, informa que, segundo o grupo feminista Brasil Mulher, o GALF era um dos únicos grupos de lésbicas no país e mais articulado. No segundo semestre de 1983, O GALF já era provavelmente o único. As cartas são referentes ao CCC3
A outra, de João Antonio Mascarenhas, que viria a formar o Triângulo Rosa, elogiando o boletim CCC e meu texto sobre a história do GALF.
Mascarenhas também questiona meu uso do termo "bicha" no masculino. Na minha resposta digo que tem a ver com o fato de gays serem homens de qualquer forma, mas a razão principal era mesmo o fato de os gays do Somos se autodenominarem "os bichas" como forma de esvaziar a conotação negativa que a palavra tinha à época. Eles assim se chamavam e, por um bom tempo, nós adotamos o termo. Depois, o período jocoso foi embora, e o termo desapareceu.
Condições de compartilhamento deste texto: Você deve dar o crédito apropriado a autora Míriam Martinho, prover link para este texto e para as fotos que o ilustram, se for utilizá-los. Você não pode usar o material para fins comerciais. Você não pode remixar, transformar ou criar a partir deste material.
0 comentários:
Postar um comentário