Chanacomchana 2: resgate e edição comentada

quarta-feira, 28 de dezembro de 2022

CCC 2 Fev.1983 © Coleção Chanacomchana. Míriam Martinho



Em dezembro de 1982, era lançado o primeiro número do boletim Chanacomchana seguido de outros 11 números (ver resgate do CCC 1 aqui, CCC2 aqui, CCC 3 aqui, CCC 4 aqui, CCC 5 aqui, CCC6 aqui, CCC 7 aqui, CCC 8 aqui, CCC 9 aqui, CCC 10 aqui, CCC 11 aqui, CCC 12 aqui). Neste artigo, abordo o ChanacomChana 2, não sem antes falar do contexto histórico e político de onde o periódico emerge, fundamental para entender sua produção e conteúdo (ver mais informações em Memória Lesbiana: 41 anos de ChanacomChana  aqui).

Grupo Ação Lésbica-Feminista (GALF) e sua primeira publicação, o boletim Chanacomchana, nascem durante o primeiro ciclo do MHB (Movimento Homossexual Brasileiro) também chamado de ciclo libertário (78-83/84) porque nele prevaleciam as ideias da Contracultura, aquele grande guarda-chuva de movimentações e movimentos socioculturais e comportamentais que se inicia já nos anos 50, percorre as décadas de 60 e 70, terminando no início dos anos 80. Retomando elementos do anarquismo e do romantismo, a Contracultura vai priorizar a revolução individual, politizando o cotidiano e as inter-relações humanas (o privado é político) e retomando a máxima gandhiana de que as pessoas tinham que se tornar a mudança que queriam ver no mundo. Não havia interesse na tomada de poder do Estado, objetivo dos partidos políticos, mas sim na revolução molecular dos grupos discriminados e oprimidos que unidos superariam a incompetência da América católica e seus ridículos tiranos (Enquanto os homens exercem seus podres poderes, índios e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes fazem o carnaval - Caetano Veloso).

Na prática, os grupos daquele incipiente movimento se preocupavam com a não reprodução da política tradicional, suas hierarquias, disputas de poder, discursos da boca para fora, e tentavam (com pouco sucesso) não reproduzir suas mazelas. Nesse sentido também, pregavam a autonomia dos movimentos sociais em relação aos partidos políticos, uma das bandeiras de maior bom senso daquela época. O GALF era tributário dessas ideias (vide o texto Autonomia), via esquerda libertária, das ideias do feminismo de segunda onda, com seu questionamento dos papéis sexuais, e das correntes do separatismo lésbico do também incipiente movimento lésbico internacional.

A Revolução DIY
Todo esse amálgama de ideias e inspirações aparecem nas páginas do Chanacomchana do seu período inicial e nele permanecem no período posterior, de 1985 em diante, apesar do afã revolucionário contracultural do MHB ir sendo paulatinamente substituído pelo reformismo pragmático de grupos como o GGB e o Triângulo Rosa.

Também do ponto de vista gráfico, o CCC vai seguir a ética e a estética contracultural do "Do It Yourself - DIY" (Faça você mesmo) matriz, entre outras produções, dos fanzines produzidos artesanalmente, com colagens e mistura de tipos gráficos, e, no conteúdo, com uma miscelânea de textos políticos, tirinhas, desenhos, poesias, depoimentos, notícias e app arcaico de namoro (o Troca-cartas). Nas vendas, o corpo a corpo junto ao público-alvo ou, posteriormente, via correios através do sistema de associação.

Nem o GALF nem o ChanacomChana refletem qualquer luta contra a ditadura militar mesmo porque seu contexto histórico é o do governo da abertura do general Figueiredo, da redemocratização, que se iniciara com a revogação do AI-5 em 13/10/78, ainda sob o governo Geisel. De fato, o governo Figueiredo foi uma democratura, uma convivência de elementos ainda autoritários do regime em decomposição com aumento crescente de características democráticas caminhando a passos largos para o restabelecimento do poder civil. Embora a censura, só revogada com a Constituição de 1988, ainda existisse no período, ela não vitimou o GALF ou o ChanacomChana em momento algum. Tal fato pode ser constatado facilmente pela simples leitura dos Chanas onde não se encontram sequer informes referentes ao regime militar, muito menos registro de qualquer arbitrariedade que tenhamos sofrido dos militares. O GALF e suas publicações foram, de fato, insurgências contra a ditadura da heterossexualidade obrigatória praticamente onipresente do período.

ChanacomChana nº 2 – Edição comentada



CCC 2 - 8 de Março, p. 1


Em fevereiro de 1983, era lançado o boletim ChanacomChana número 2, que se insere no período inicial do GALF (10/81 a 08/ 85) correspondente à fase em que a organização encampa o histórico do coletivo que o precedeu, o Grupo Lésbico-Feminista - LF (05/1979-06/1981) - adota, inclusive, nos dois primeiros números do CCC, uma das últimas assinaturas do LF (a saber, Grupo de Ação Lésbico Feminista) -, divide sedes com o grupo gay Outra Coisa de Ação Homossexualista e promove a hoje célebre invasão do Ferro’s Bar. Também é o período em que o grupo vive vários conflitos com o Movimento Feminista por este não incorporar a questão lésbica à sua agenda oficial. No ChanacomChana seguinte, o de n⸰ 3, o GALF assume seu nome definitivo, Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF), para inclusive forçar uma concordância nominal no feminino, com o qual assinará seus documentos e produzirá as demais edições do ChanacomChana e as do boletim Um Outro Ohar (10 edições) a partir de maio de 1983 até março de 1990.

Sumário

8 de Março   - p.1
A Negação da Homossexualidade - p. 2
Fazendo Poesias - p. 3
A Queda para o Alto - p. 4
Associação das Donas de Casa discute lesbianismo, aborto - p. 6
Informes - p. 11
Cartas - p. 12

8 de Março, p. 1 (Míriam Martinho)

Na primeira página do CCC 2, escrevi uma pequena introdução sobre o boletim e o descrevi como fruto do Grupo de Ação Lésbico Feminista, como comentei acima. Coloquei um pequeno sumário e reproduzi também um folheto sobre o 8 de março dos grupos feministas da época que seria comemorado de forma descentralizada em várias regiões da cidade, culminando com uma festa no Museu de Arte de São Paulo (MASP). Vale salientar que, nesse texto, rola aquela versão de que o Dia Internacional da Mulher surgira a partir de um incêndio criminoso ateado pela polícia, numa fábrica têxtil, contra operárias em greve por melhores condições de trabalho. Tal evento teria então sido promulgado como Dia Internacional da Mulher em 1910, num Congresso Internacional de Mulheres, para lembrar o triste acontecimento (o incêndio) de 8 de março de 1857. Muito tempo depois, tive acesso a outra visão dessa história, a partir de textos de pesquisadoras, que resumi no artigo "8 de Março: A origem revisitada do Dia Internacional da Mulher".

A negação da Homossexualidade , p. 2 (Míriam Martinho)

Crítica ao discurso da não identidade homossexual, muito em voga nos primeiros anos da década de 80, que afirmava serem identidades apenas rótulos, como se bastasse alguém dizer que não era homossexual para a opressão terminar. © "Quem é Sapatão para o Camburão" Míriam Martinho


Na página 2 do CCC 2, eu publiquei um artigo de minha autoria, chamado A Negação da Homossexualidade, que ilustrei com a tirinha "Quem é Sapatão pro Camburão". Pode parecer surreal para as gerações atuais que, a cada dia, aparecem com uma identidade nova para chamar de sua, que o Movimento Homossexual Brasileiro, em seus primórdios, tenha embarcado numa discussão sobre os perigos da identidade homossexual num momento em que gays e lésbicas apenas começavam a luta por alguma cidadania. Entretanto, o fato é que essa discussão rendeu até mais do que os debates sobre a cooptação do recém-nascido movimento homossexual pelos trotskistas da Facção Gay da Convergência Socialista. Estes perderam o interesse pelo MHB na medida em que ele começou a refluir, já em meados de 1981, e parecem ter ido militar no PT.

A discussão sobre os problemas da identidade homossexual, porém, esteve bem presente até o fim do primeiro ciclo do movimento (1978-1984) tanto que, em maio de 1984, eu volto a abordá-la no ChanacomChana nº 5, e permaneceu subjacente por toda a década de 80. De fato, na minha opinião, ela vai se associar com a chegada da AIDS, de enorme impacto na vida dos gays, como fator de desmobilização do MHB nos anos 80, só desaparecendo efetivamente na década de 90, quando a afirmação das diferentes identidades homossexuais começa a ser a regra e o movimento renasce como MGLT.

No meu artigo A Negação da Homossexualidade, no CCC 2, eu vou reconhecer a possibilidade de a afirmação de uma identidade homossexual "cair num esquema de normatização, modelização, padronização das categorias sexuais" e que se precisava ficar alerta sobre ela. No entanto, argumentava que essa discussão, da forma como posta então, levava à invisibilidade da homossexualidade e à desmobilização política. Como se reivindicar direitos políticos para os seres humanos marginalizados por sua orientação sexual, sem estabelecer um sujeito político, reconhecido pela sociedade, para essas reivindicações? Simplesmente sair-se negando os rótulos de hétero, homo, colocando-se como "apenas gente", como na tirinha, mudava a realidade objetiva do tratamento totalmente diferenciado dado a héteros e homos? A tirinha mostra que não, fazendo inclusive referência às batidas dadas pelo sensacionalista delegado José Wilson Richetti da Delegacia Seccional do Centro de SP, em 1980, nos bares lésbicos (conhecida como Operação Sapatão) e prisões arbitrárias de prostitutas, travestis, negros, gays e lésbicas (na chamada Operação Limpeza).

Passados 40 anos, o apontamento sobre os perigos dos identitarismos do início dos anos 80 parece fazer mais sentido hoje do que outrora. A meu ver, o problema foi que da criação de sujeitos políticos a fim de se reivindicar direitos, numa perspectiva funcional, passou-se a uma visão essencialista das identidades, a uma redução dos grupos discriminados à condição unidimensional e inescapável de vítimas, ironicamente despindo esses grupos da posição de sujeitos políticos e de indivíduos em toda a sua complexidade. Questão espinhosa, o fato é que, se hoje ela se apresenta como realmente problemática, no início dos anos 80, tinha ares de discussão bizantina.

Fazendo Poesia, p.3 

Em Fazendo Poesia eu começava a delinear uma seção que estará quase sempre presente em todos os títulos que produzi até a revista Um Outro Olhar: a de poesias. Como, desde Safo, lésbicas parecem particularmente afeitas à criação e ao consumo de poesias, prosas poéticas, contos, crônicas etc., nada mais coerente do que ter uma seção de poesias num boletim por e para lésbicas. A partir do CCC 6, "Fazendo Poesia" se tornará simplesmente "Poesia".

Neste CCC2, escolhi 3 poesias, uma da Vange Leonel, namorico fugaz de 1981, uma poesia minha dos anos 70 e uma prosa poética de uma colaboradora do GALF à época, chamada Regina (espero ainda resgatar o sobrenome). Se o poema de Vange é sobretudo amoroso, o meu e o de Regina ostentam a coragem de amar outra mulher num contexto de ainda grande discriminação. O meu Crime Perfeito que é dá década de 70, período de grande marginalidade para gays e lésbicas, inclusive exemplifica essa marginalidade comparando um caso lésbico a um ilícito gozoso e contestador. 


A Queda para o Alto, p. 4 (Rosely Roth)

Em "A Queda para o Alto", Rosely Roth vai fazer a resenha do livro de mesmo nome, de autoria de Sandra Mara Herzer, relato de sua vida sofrida de abandono e abusos sobretudo na Febem Vila Maria (Fundação Estadual para o Bem-Estar do Menor de São Paulo), hoje Fundação Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente (o nome mudou, mas os abusos continuam).

Vai pontuar que Sandra assumiu uma persona masculina, Bigode, na Febem, porque foi educada com apenas dois modelos, o do masculino, forte, ativo, dinâmico, racional, e o do feminino, passivo, fraco, submisso, optando pelo que lhe pareceu menos ruim, provavelmente o que mais lhe permitia sobreviver num ambiente tão hostil. Vai dizer que Sandra se assumiu como o "homem" de seus relacionamentos porque não conseguia perceber que mulheres também podiam ser dinâmicas, fortes, sentimentais e combinar características várias presentes em todos os seres humanos, mas departamentadas entre os sexos pelos papéis sexuais (hoje chamados de papéis de gênero). Contesta inclusive a hipótese levantada por Eduardo Suplicy e Lia Junqueira de que Sandra teria se assumido Bigode porque tivera um namorado que falecera e que, como compensação por sua perda, o teria incorporado. Contesta também a opinião de Junqueira de que Sandra teria se suicidado num momento em que Bigode se ausentara e a deixara desarmada, pois isso passaria uma imagem ruim da mulher que, sem um escudo masculino, se mata. 

Vale destacar essa questão da discussão dos papéis sexuais (hoje de gênero) porque ela está presente nesse CCC2, no meu texto A Negação da Homossexualidade e nesta resenha de Rosely sobre o livro de Sandra. E vai continuar presente em outros textos dos Chanas futuros porque considerávamos o combate a esses estereótipos como essenciais para a libertação das mulheres de sua milenar opressão. Nas reuniões de estudos do GALF, o livro Educar para a submissão: O descondicionamento da mulher, de Elena Gianini Belotti, era obrigatório. Nele, a autora disseca todos os condicionamentos impostos a meninas e meninos para se encaixarem nos famigerados papeis sexuais. 

Embora Rosely pondere, em sua resenha, que se vestir como homem não significava necessariamente a reprodução do estereótipo masculino, numa mudança de posição do coletivo do LF para o do GALF, a associação supostamente natural entre sexo e gênero era algo a ser refutado. Libertador era as mulheres poderem ser masculinas sem se considerarem homens por isso. E homens poderem ser femininos sem precisar se considerar mulheres. Importante salientar isso porque difere inteiramente da visão atual de que mulheres masculinas são homens trans e homens femininos são mulheres trans. A atual concepção era exatamente o que o GALF combatia, não havendo, portanto, conexão entre o GALF e o tal movimento LGBTQI+, que renaturalizou os estereótipos de gênero em grande prejuízo de mulheres e de gays e lésbicas.

Associação das Donas de Casa discute lesbianismo, aborto... p. 6 (GALF)

Cida Copkak  
Img: Enfoque Feminista, 11/1992

Os movimentos que lutavam pelos direitos das mulheres nos fins da década de 70 e início da de 80 se dividiam entre movimento feminista e movimento de mulheres. As feministas eram as que começavam a levantar as bandeiras da violência contra a mulher (doméstica e sexual), da sexualidade e do aborto (o coletivo do Grupo Lésbico-Feminista teve papel importante como alavancador dessas questões). As do movimento de mulheres as que se engajavam nas lutas das mulheres da periferia contra a carestia, por luz, esgoto, água e creche. 

Cida Kopcak era uma mulher da periferia (zona leste de São Paulo), fundadora da Associação das Donas de Casa, que se dizia feminista e não teve problema em dar uma entrevista para um grupo de lésbicas numa época em que falar de lesbianismo, como se dizia então, era bem polêmico. Outras feministas queriam empurrar as lésbicas para o armário sob a desculpa de que afastariam as mulheres da periferia do movimento.  Esse discurso era bem comum no período. Indagada sobre essa história de que a periferia não aceitaria debater lesbianismo, ela respondeu:
Cida: As feministas, aí é que está. Há um grupo de mulheres que se assumem feministas e que no meu modo de ver não são. Elas falam em nome de um monte de “mulherada”, mas na realidade não representam estas mulheres. Elas dizem que não podem falar sobre lesbianismo porque o pessoal do bairro não aceita isto. Mas estas feministas que são contra, que não põem isto no programa, elas praticam entre elas. Mas daí elas falam: se eu puser isto, como é que fica para a Associação das donas-de-casa, o que é que elas vão pensar, por exemplo, do Brasil Mulher, se elas levantarem esta bandeira, do SOS Mulher, se elas levantarem esta bandeira, do Centro da Mulher? Você sente que elas falam em nome de mulheres que elas nem sabem quem são. Eu debato sempre na Associação o seguinte; se você gosta de uma mulher, por que você não pode transar com ela, meu Deus do céu! O que que te impede? É este espaço que você tem que conseguir. Buscar um verdadeiro amor. (CCC2, p.7).

Ilustrei essa entrevista com a tirinha "Maria Vai com as outras e mariazinha" de minha autoria.

Nesta entrevista (quase uma conversa), Cida também argumenta que eram as mulheres da cidade (em oposição à periferia), suas lideranças, que guardavam esse debate dos periféricos, embora se soubesse do homossexualismo nas comunidades. E que o aborto era um tema muito menos aceito nas periferias do que o lesbianismo. E talvez ainda seja.


Informes, p. 11 (Míriam Martinho)

A seção Informes foi a primeira que criei para o ChanacomChana desde o primeiro número e que permanecerá até o CCC 8. A partir do número 9, mudo o nome dessa seção para Em Movimento, título que manterei nos números seguintes do CCC e do título Um Outro Olhar (boletim e revista). Essa seção era formada por notas sobre o ativismo nacional e internacional, sobre a questão lésbica, gay e feminista, a partir das publicações que o GALF recebia dos grupos com quem se correspondia ou trocava material e mesmo de notícias da imprensa local. Eu fazia a edição dessas notas, com tradução e revisão, ou reproduzia parcialmente a notícia (totalmente era raro). Nesta edição do CCC 2, as notas foram sobre campos de concentração para lésbicas, em Moçambique, a revista Connexions que dedicara um número inteiro sobre a vida das lésbicas em diferentes países, o registro assumido do Grupo Gay da Bahia, o abaixo-assinado em apoio do ex-redator do Lampião da Esquina, Antonio Carlos Crisóstomo, que fora acusado falsamente de violentar a filha de 4 anos, assassinatos de travestis, a 5ª Conferência do Serviço de Informação Lésbico Internacional (ILIS) e o desenvolvimento do futebol feminino.

Cartas (e embrião do Troca-cartas), p. 12

Na seção de Cartas, cartas de leitoras, com destaque para a de Naná Mendonça que viria a ser grande colaboradora do CCC e do UOO, bem como do GGB (real contemporâneo do GALF) elogiando e sugerindo seções como a de poesias e de correspondência entre as leitoras, embrião do futuro e muito popular Troca-cartas criado a partir do CCC 7.

CCC 2fev. 1983  © Coleção ChanacomchanaMíriam Martinho

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