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segunda-feira, 27 de dezembro de 2021

ChanacomChana 1: resgate e edição comentada

Capa Helena A. © coleção ChanacomChana Míriam Martinho

Em dezembro de 1982, era lançado o primeiro número do boletim Chanacomchana seguido de outros 11 números (ver resgate do CCC 1 aqui, CCC2 aqui, CCC 3 aqui, CCC 4 aqui, CCC 5 aqui, CCC6 aqui, CCC 7 aqui, CCC 8 aqui, CCC 9 aqui, CCC 10 aqui, CCC 11 aqui, CCC 12 aqui). Neste artigo, abordo o ChanacomChana 1, não sem antes falar do contexto histórico e político de onde o periódico emerge, fundamental para entender sua produção e conteúdo (ver mais informações em Memória Lesbiana: 41 anos de ChanacomChana  aqui).

Grupo Ação Lésbica-Feminista (GALF) e sua primeira publicação, o boletim Chanacomchana, nascem durante o primeiro ciclo do MHB (Movimento Homossexual Brasileiro) também chamado de ciclo libertário (78-83/84) porque nele prevaleciam as ideias da Contracultura, aquele grande guarda-chuva de movimentações e movimentos socioculturais e comportamentais que se inicia já nos anos 50, percorre as décadas de 60 e 70, terminando no início dos anos 80. Retomando elementos do anarquismo e do romantismo, a Contracultura vai priorizar a revolução individual, politizando o cotidiano e as inter-relações humanas (o privado é político) e retomando a máxima gandhiana de que as pessoas tinham que se tornar a mudança que queriam ver no mundo. Não havia interesse na tomada de poder do Estado, objetivo dos partidos políticos, mas sim na revolução molecular dos grupos discriminados e oprimidos que unidos superariam a incompetência da América católica e seus ridículos tiranos (Enquanto os homens exercem seus podres poderes, índios e padres e bichas, negros e mulheres e adolescentes fazem o carnaval - Caetano Veloso).

Na prática, os grupos daquele incipiente movimento se preocupavam com a não reprodução da política tradicional, suas hierarquias, disputas de poder, discursos da boca para fora, e tentavam (com pouco sucesso) não reproduzir suas mazelas. Nesse sentido também, pregavam a autonomia dos movimentos sociais em relação aos partidos políticos, uma das bandeiras de maior bom senso daquela época. O GALF era tributário dessas ideias (vide o texto Autonomia), via esquerda libertária, das ideias do feminismo de segunda onda, com seu questionamento dos papéis sexuais, e das correntes do separatismo lésbico do também incipiente movimento lésbico internacional.

A Revolução DIY
Todo esse amálgama de ideias e inspirações aparecem nas páginas do Chanacomchana do seu período inicial e nele permanecem no período posterior, de 1985 em diante, apesar do afã revolucionário contracultural do MHB ir sendo paulatinamente substituído pelo reformismo pragmático de grupos como o GGB e o Triângulo Rosa.

Também do ponto de vista gráfico, o CCC vai seguir a ética e a estética contracultural do "Do It Yourself - DIY" (Faça você mesmo) matriz, entre outras produções, dos fanzines produzidos artesanalmente, com colagens e mistura de tipos gráficos, e, no conteúdo, com uma miscelânea de textos políticos, tirinhas, desenhos, poesias, depoimentos, notícias e app arcaico de namoro (o Troca-cartas). Nas vendas, o corpo a corpo junto ao público-alvo ou, posteriormente, via correios através do sistema de associação.

Nem o GALF nem o ChanacomChana refletem qualquer luta contra a ditadura militar mesmo porque seu contexto histórico é o do governo da abertura do general Figueiredo, da redemocratização, que se iniciara com a revogação do AI-5 em 13/10/78, ainda sob o governo Geisel. De fato, o governo Figueiredo foi uma democratura, uma convivência de elementos ainda autoritários do regime em decomposição com aumento crescente de características democráticas caminhando a passos largos para o restabelecimento do poder civil. Embora a censura, só revogada com a Constituição de 1988, ainda existisse no período, ela não vitimou o GALF ou o ChanacomChana em momento algum. Tal fato pode ser constatado facilmente pela simples leitura dos Chanas onde não se encontram sequer informes referentes ao regime militar, muito menos registro de qualquer arbitrariedade que tenhamos sofrido dos militares. O GALF e suas publicações foram, de fato, insurgências contra a ditadura da heterossexualidade obrigatória praticamente onipresente do período.


Chanacomchana nº – Edição comentada

 Sumário

 GALF - ILIS -  p. 1
 O Lesbianismo e um barato -  p. 2
 Mulher de chuteira -  p. 3
 Carta por Sandra Mara -  p. 5
 I Festival Nacional de Mulheres nas Artes - p. 6 
 Informes: encontro de grupos homossexuais 
 com o governador Franco Montoro; caso Antonio   
 Crisóstomo; SOS-Mulher  -  p.10   
    
 

Em dezembro de 1982, era lançado o ChanacomChana 1, que se insere no período inicial do GALF (10/81 a 08/ 85) correspondente à fase em que a organização adota o histórico do coletivo que o precedeu, o Grupo Lésbico-Feminista (05/1979-06/1981), divide sedes com o grupo gay Outra Coisa de Ação Homossexualista e promove a hoje célebre invasão do Ferro’s Bar. Também é o período em que o grupo vive vários conflitos com o Movimento Feminista por este não incorporar a questão lésbica à sua agenda oficial.

Por ser a primeira edição do boletim CCC, ela ainda não tem a separação por seções que vou introduzir nos números posteriores, apesar de já aparecerem os informes.

Informes, p. 1 (Míriam Martinho)

O boletim se inicia com alguns informes sobre o GALF, ainda intitulado então de Grupo de Ação Lésbico-Feminista, e sobre o Serviço de Informação Lésbica Internacional (ILIS), organização criada por lésbicas europeias que vai ter grande importância na expansão do movimento lésbico para além da Europa e dos EUA nos anos 80 e 90.

"Não sofra calada", ©Míriam Martinho, 08/07/1982
- Crítica ao grupo feminista SOS-Mulher

O Lesbianismo é um barato, p. 2 (Míriam Martinho)

No primeiro texto que escrevi para a coleção CCC, O Lesbianismo é um Barato, e ilustrei com a tirinha Não Sofra Calada, também de minha autoria, eu criticava a postura do grupo feminista SOS Mulher, um coletivo feminista que, embora dissesse lutar contra a violência sobre as mulheres, não abordava a violência específica contra as lésbicas.

No texto, eu me remetia a uma gíria da época, “barato”, sobre os efeitos prazerosos do uso de algumas drogas. Equivale ao “brisa” atual. No entanto, significava também uma coisa muito legal. Várias gírias da época vieram do mundo dos usuários de drogas, mas que adquiriram acepções mais abrangentes. “Careta” era a princípio quem não tomava drogas, mas se expandiu para designar pessoa muito certinha, conservadora. Ficar de bode era fundamentalmente um pós viagem ruim de drogas, mas se expandiu para estar deprimido, de mau humor. Enfim, ainda estávamos sob os eflúvios da Contracultura e sua muito conhecida apreciação pelas drogas de vários tipos que influenciavam inclusive as gírias.

Nesse texto, então, eu afirmava que o lesbianismo era uma coisa muito boa, um barato, mas o preço que a gente pagava para curtir esse barato era bem caro. Coerente com a visão do GALF do lesbianismo como algo político, transcendendo à orientação sexual, vou dizer que o lesbianismo era um barato porque propunha o amor entre as mulheres bem no meio das estruturas ultramisóginas do sistema patriarcal. Também por demonstrar que as mulheres não estavam tão ilhadas nas diferenças de classe, “raça” ou sexualidades, a ponto de não poderem trabalhar juntas, pois inclusive as lésbicas eram negras, brancas, mães, operárias, donas de casa e frequentemente tinham intersecções com todas as mulheres.

Mulher de Chuteira (p. 3-4)

Mulher de Chuteira- Charge
Míriam Martinho para CCC1

Entrevista com jogadoras de futebol feminino da boate lésbica Moustache, Mulher de Chuteira (p. 3-4) feita pelo coletivo do GALF da época. Vale lembrar que o futebol feminino foi vetado por Getúlio Vargas em 14 de abril de 1941, via o Decreto-Lei 3.199, art. 54, que proibia as mulheres de praticar esportes que não fossem "adequados a sua natureza". No início da ditadura militar, em 1965, o Conselho Nacional de Desportos (CND) citou nominalmente os esportes proibidos para as mulheres, como "lutas de qualquer natureza, futebol, futebol de salão, futebol de praia, polo-aquático, Rugby, halterofilismo e beisebol”. Entretanto, ainda na vigência do regime militar, o decreto do Vargas foi extinto em 1979, e o futebol feminino regulamentado em 1983. Ou seja, um pouco depois da entrevista das jogadoras ao Chana em que pediram para não ter seus nomes citados. Em 11/08/2024, as jogadoras brasileiras de futebol trouxeram novamente a prata olímpica de volta ao Brasil.

Carta por Sandra Mara 
(Rosely Roth)

Texto, de Rosely Roth, sobre a ex-interna da FEBEM Sandra Mara Herzer que se suicidara em 9 de agosto de 1982 e sobre o livro A Queda Para o Alto, lançado em outubro de 1982, contendo um misto de poesias e relatos de Sandra sob o pseudônimo de Anderson Herzer. Acompanha também o texto de minha autoria do panfleto Carta por Sandra Mara que o GALF distribuiu na Assembleia Legislativa de São Paulo por ocasião do lançamento do livro. Vale ressaltar que Sandra Mara, apesar de adotar persona e pseudônimo masculinos, não era nenhum "homem trans", pois não havia tal identidade na época. Lésbicas masculinizadas eram chamadas somente de sapatões, franchonas, caminhoneiras, etc. Reescrituras da história, retratando, como "homens e mulheres trans", gays e lésbicas que representavam estereótipos de gênero atribuídos ao sexo oposto ao seu, não passam de anacronismo, algo a ser evitado por qualquer pessoa que queira ter alguma credibilidade intelectual.

I Festival Nacional De Mulheres Nas Artes, p. 6 (Míriam Martinho e Rosely Roth)

Matéria sobre o Festival de Mulheres nas Artes (3-12/09/1982), p. 6 a 10, que teve como principal organizadora a atriz Ruth Escobar (também foi deputada estadual), personalidade de destaque do período. A matéria foi redigida por mim e Rosely, registrando nossas impressões sobre esse evento tão diverso e rico em vários sentidos. Fora as programações artísticas propriamente ditas, o Festival promoveu o futebol feminino que, pela primeira vez, entrou no estádio do Morumbi, e trouxe palestras com expoentes do feminismo internacional como Kate Millet, Dacia Maraini, Antoinette Fouque, estas duas últimas falando das implicações políticas da lesbianidade, algo bem oposto ao discurso da lesbianidade como opção sexual vigente no feminismo brasileiro da época. São abordagens provocativas que resistiram ao tempo e valem a leitura. A matéria registra ainda a censura à música "Franchitude de Francha" (Gisele Fink-Míriam Martinho) que foi proibida de concorrer, pela censura federal, no Festival Feminino da Canção para o qual havia sido aprovada. A música era uma paródia das relações tumultuadas das sapatas do Ferro's Bar, muito influenciada pelas músicas do cantor e compositor Eduardo Dussek.

O GALF redigiu uma nota de protesto contra a censura que reproduzo por ser um exemplo das diferenças de pensamento entre o ativismo daquela época e de hoje. Atitudes censórias eram típicas do governo militar que nos governava há quase duas décadas. Daí a frase: "Acreditamos que toda e qualquer censura é uma violência a um direi­to intrínseco de todo ser humano: o direito a expressão de seu pensamento."

O ativismo de hoje, sob a desculpa de combater discursos de ódio (e praticamente tudo virou discurso de ódio), não faz outra coisa que não querer censurar tudo e todos que não sigam por suas linhas tortas via cultura do cancelamento. Nesse afã, como os ditadores do passado, "destroem a criação, a consciência, a crítica positi­va, a liberdade, o bom humor, o ser humano..."
Liberdade, abra as asas sobre nós

O FESTIVAL NACIONAL DAS MULHERES NAS ARTES representou uma oportunidade para que nós, mulheres, pudéssemos mostrar nossos trabalhos há tanto tempo silenciados pela cultura masculina. 
E é esta mesma cultura, da qual tantas vezes gomos cúmplices, que como não poderia deixar de ser, manifestou-se concretamente durante este Festival. A música "Franchitude de Francha", classificada na terceira eliminatória, foi proibida pela censura federal. Acreditamos que toda e qualquer censura é uma violência a um direi­to intrínseco de todo ser humano: o direito a expressão de seu pensamento.
A liberdade é como uma máquina nova, enquanto não se tiver contato com ela, não será possível aprender a manejá-la. Proibir a música "Franchitude de Francha" é manter ideias pré-concebidas que destroem a criação, a consciência, a crítica positi­va, a liberdade, o bom humor, o ser humano, um povo .

Liberdade, abra as asas sobre nós." (p. 7)

Informes, p. 10 (Míriam Martinho) 

Na última página do CCC1, voltamos aos informes, com destaque para a notícia do encontro das organizações civis da época com o governador Franco Montoro, eleito na primeira eleição direta para o Palácio dos Bandeirantes desde 1962. Neste encontro, o GALF reivindicou o fim do parágrafo 302.0 que rotulava a homossexualidade como doença, o direito dos casais homossexuais à custódia de seus filhos e à adoção de crianças, etc...

CCC 1dez. 1982  © Coleção ChanacomchanaMíriam Martinho

2 comentários:

  1. que trabalho de pesquisa incrível, parabéns pelo texto - uns anos atrás achei num sebo uma edição da Revista Femme (ed. Setembro/94) - scaneei ela - se quiser te envio, é só avisar

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    1. Obrigada, Kol! Escreva para mim pelo e-mail uoo@umoutroolhar.com.br

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