Baseado na história de amor da vida real da diretora Karole Di Tommaso, “Mãe+Mãe”, mostra a trajetória de duas mulheres, Karole (Linda Caridi) e Ali (Maria Roveran) que se amam e sonham em ter uma criança e formar uma família juntas. Elas logo percebem que não será tão simples quanto esperavam e, à medida que o entusiasmo diminui, o amor delas é desafiado. Para superar os obstáculos, elas devem acreditar na força de seu desejo e no apoio de seus entes queridos.
Direção: Karole Di Tommaso
Título Original: Mamma+Mamma (2018)
Gênero: Romance | Comédia
Duração: 1h 20min
País: Itália
Quando o Fim é o Começo
Inédito no Brasil, chegou, no dia 12 de março, ao catálogo do novo serviço de streaming Supo Mungam Plus o italiano “Mãe+Mãe“, uma comédia autobiográfica da diretora Karole Di Tommaso. Um caso típico de autoria e de entrega da própria história a favor da arte, mas, curiosamente, sem as amarras melodramáticas comuns às narrativas de um gênero que – há muito tempo – precisa deixar de sê-lo.
Ainda há uma mistura de orgulho e incômodo quando as grandes plataformas como a Netflix dividem as obras com a clássica definição “Filmes LGBT”. Se por um lado satisfaz a todos que desejam que histórias como a de Karole (na ficção interpretada pela carismática Linda Caridi) ampliem sua visibilidade nos grandes pontos de consumo de cinema, fica sempre a sensação de que há, por trás de tudo, um “aviso”. É possível que o espectador tradicional não encontre tais produções nas estantes virtuais de drama, comédia – quando muito, nas biografias. Ou seja, enquanto indústria, ainda há essa dicotomia pesada (e relevante) na hora de vender tal produto.
Feita essa breve intervenção, resta a certeza de que amor é um conceito – forte e único. O de Karole por Ali (Maria Roveran) não é diferente de nenhum outro, mas gera a resistência de qualquer sociedade cuja opinião pública resta ultrapassada. A cineasta, então, nos propõe em “Mãe+Mãe” contar a trajetória do casal em uma tentativa de inseminação, possibilitando a realização do sonho da maternidade das duas. O faz, entretanto, com uma leveza, com flashbacks que nos faz resgatar a inocência basilar da humanidade a partir da infância, tornando todos os pilares do conservadorismo adornos de uma estrada que nossas protagonistas não deixaram nunca de seguir caminho.
As representações iniciais do filme promovem o tradicionalismo narrativo de um drama (interessante que, ontem, falamos como a série “Filhas de Eva” usa as mesmas simbologia dos folhetins brasileiros para quebrá-los). Cada vez mais o audiovisual humanista entende que jogar o jogo do público não convertido é uma tática poderosa. Com isso, somos levados ao pesadelo de Karole em que ela perde um filho e chegamos a alguns rituais de maternidade clichês, mas ao mesmo tempo singelos e inafastáveis. Um deles é a escolha do nome da futura criança, inclusive em homenagem a um antepassado da família.
O primeiro grande “desafio” (na verdade preconceito, que transformado em obstáculos corriqueiros não transformam a ideia do que realmente é fica por conta do preenchimento de fichas. Um constrangimento a partir de rotulações que muitos passaram a vida lutando contra. Por mais que a sociedade tenha rediscutido o conceito de família e, ao custo de muita regulamentação progressista feita na marra, tenha admito em alguns lugares o registro e, em outros mais, a adoção de bebês por casais LGBT, os questionários não mudam. Para falar de definições, deixo um link de uma carta aberta do Coletivo Feminismo com Classe sobre barriga de aluguel, em que a definição de sintético aparece – uma das âncoras dramáticas do longa-metragem.
Karole e a mulher, Ali, viajaram a Barcelona para realizar o sonho de engravidarem. |
Por sinal, em “Mãe+Mãe” parte do ritual ansiado pelo casal demanda a gestação de uma delas, o que até age em consonância com o texto publicado no QG Feminista. A diretora usa sua história e evita didatizar qualquer assunto, tornando todas as manifestações fundamentais elementos da narrativa – porém, capazes de provocar apenas aos que desenvolvem empatia prévia. Uma forma de se expressar bem mais justa e menos maniqueísta do que dramas que exigem essa conexão pela empatia. São palavras e gestos que emocionam os mais atentos, os envolvidos ou todos aqueles que se projetam na história de Karole e Ali. Em um deles, a carga de responsabilidade e a demonstração de amor quando a médica permite que uma faça o ato de inseminar a outra, por exemplo.
Ao resgatar outros pontos de sua biografia, principalmente da infância, Di Tomasso em “Mãe+Mãe” faz lembrar do tempo em que conceitos são moldados – geralmente ao custo de muito preconceito. São os momentos em que o espectador é envolvido em uma construção mais doce, de uma menina consciente de si. Dali em diante, ela terá pela frente os tais pilares já mencionados. O avô, que possui uma visão distante enquanto reflexo do choque geracional; até o Padre, que aplica os preceitos da religião da forma que convencionaram, ignorando o fato de que o amor de Deus é universal. Referenciais masculinos, claro, que não têm como serem eliminados em todo da realidade de nenhum de nós.
Porém, curiosamente Ali lembra que, para muitas mulheres (mães e filhas), a ausência do referencial masculino é fato incontroverso. Quantos pais fogem da responsabilidade, pelos motivos mais torpes e cafajestes possíveis? Mesmo assim, a reprodução de outros preceitos, o da heteronormatividade e do patriarcado, permaneceram ao longo do tempo. Quando o filme atinge essa estágio, ele está pronto para – na forma estilingada como desenvolve sua trama – complexificar o conceito de maternidade. Abdicando, como já dissemos, do melodrama. Totalmente o oposto de “Mães de Verdade” (2020), produção recente da diretora Naomi Kawaze que chega ao circuito brasileiro daqui a dois meses.
Sem a representação folhetinesca, aplicando a leveza para dar peso a palavras e gestos, “Mãe+Mãe” já seria inesquecível pela forma doce com a qual nos prende. Adiciona, por fim, a importante conclusão de que – após todos os embates com uma sociedade preconceituosa e um sistema feito para fazê-las desistir – o final é apenas o começo. Ao fim de tudo aquilo, há vida. Na ficção, há um roteiro a ser escrito e um filme a ser lançado. Na realidade, uma nova pessoa no mundo, para destruir as ideias envelhecidas que muitos acreditam que conseguem perpetuar.
Clipping Mãe+Mãe, por Jorge Cruz Jr., Apostila de Cinema, 11/03/2001
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