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segunda-feira, 2 de março de 2020

Estudos mostram que casais de gays e lésbicas são mais felizes do que casais heterossexuais

Casais de gays e de lésbicas dividem melhor as tarefas domésticas e o cuidado com os filhos


Há cinco anos legalizado em todos os EUA, o casamento entre pessoas do mesmo sexo ainda não matou a união heterossexual. De fato, parece que muitos desses casais poderiam ter um matrimônio mais feliz e satisfatório se tomassem como exemplo algumas atitudes dos homossexuais.

Não faz muito tempo, um grupo de pesquisadores pediu a três grupos de casais casados legalmente — heterossexuais, gays e lésbicos — que mantivessem registros diários de suas experiências de pressão e dificuldades conjugais. E a conclusão foi que as mulheres em casamentos heterossexuais relataram os maiores níveis de estresse psicológico; os homens em casamentos homoafetivos, os menores. Os homens casados com mulheres e as mulheres casadas com mulheres ficaram no meio, registrando graus semelhantes de ansiedade.

Segundo Michael Garcia, principal autor do projeto, o mais impressionante é que estudos anteriores já tinham concluído que as mulheres em geral mostravam um nível maior de desconforto na relação, mas, na verdade, isso só vale para as que são casadas com homens.

Há fortes razões históricas para os casamentos heterossexuais serem sujeitos a mais tensão, desentendimento e ressentimento que as relações homossexuais: o que os distingue através dos tempos não é quantas vezes já foram realizados, mas as distinções gritantes que ditam em relação aos deveres e à autoridade dos parceiros.

Às vezes, um marido exercia autoridade sobre o trabalho de uma mulher; outras, sobre duas ou mais. Ocasionalmente, como em muitas das 80 e tantas sociedades conhecidas pela prática da poliandria, diversos maridos exerciam poder sobre uma única esposa. Até os anos 70, quando uma norte-americana se casava, seu marido passava a tomar conta de sua sexualidade e da maior parte de suas finanças, propriedades e comportamento.

Entretanto, já nessa época muita gente no país rejeitava o casamento tradicional. Ao longo das décadas de 70 e 80, as esposas ganharam igualdade legal em relação a seus maridos e a justiça redefiniu as responsabilidades da união em relação à neutralidade de gênero. Em 1994, a grande maioria da população dos EUA repudiava a necessidade de papéis específicos de gênero no matrimônio, defendendo em vez disso o compartilhamento de responsabilidades.

De fato, a divisão de tarefas domésticas passou a se tornar um componente cada vez mais importante na estabilidade conjugal, e a falta dela, um indicador mais e mais poderoso de conflito. Nas uniões realizadas antes de 1992, os casais pareciam satisfeitos com a mulher como principal responsável pelo cuidado com a casa e os filhos, mas isso mudou: estudos realizados em 2006 concluíram que os mais felizes e mais realizados sexualmente eram os que dividiam o trabalho caseiro e a educação dos filhos mais equitativamente. Aqueles em que a mulher acumulava a maior parte das obrigações domésticas, como a lavagem da louça, registravam os maiores níveis de discórdia.

Apesar disso, pouco menos de um terço dos casais heterossexuais analisados na época conseguira alcançar a igualdade aproximada na divisão do trabalho doméstico. Para a maioria dos heterossexuais, o casamento continua a reforçar o estereótipo de gêneros. Um estudo de 1999 concluiu que, quando um homem solteiro se casava, reduzia sua rotina de trabalho doméstico, em média, em três horas e meia por semana; no caso da mulher, ela aumentava o tempo de tarefas caseiras, aquelas atividades mecânicas que devem ser feitas diariamente, em um volume proporcional.

Quando chegam os filhos, as velhas tradições conjugais se confirmam ainda mais. Joanna Pepin, pesquisadora da Universidade do Texas, e seus colegas descobriram recentemente que as mães casadas passam mais tempo no serviço doméstico do que as mães solteiras e têm tempo de lazer significativamente menor que aquelas que só moram junto com os companheiros. Segundo a especialista me disse, "as expectativas de gênero tradicionalmente associadas ao papel da esposa parecem encorajar as mães casadas a trabalhar mais do que as que não são, e seus maridos a aceitar isso como algo normal".

É aqui que os casais de pessoas do mesmo sexo podem oferecer dicas bem úteis aos heterossexuais casados: uma vez que não podem usar as diferenças atribuídas às diferenças entre homens e mulheres para definir quem faz o quê, eles se baseiam menos nos estereótipos. A tendência dos pais heterossexuais é a de ver tarefas como cuidar dos filhos, lavar a roupa e a louça como parte do pacote atribuído a um dos parceiros; a probabilidade de os homossexuais assumirem obrigações tanto consideradas "femininas" como "masculinas" indiscriminadamente é muito maior.

Como também a de compartilharem os deveres rotineiros. Uma pesquisa de 2015 concluiu que quase metade dos casais homossexuais em que ambos trabalhavam fora dividia a lavagem de roupa, por exemplo, em contraste com os heterossexuais, cujos números não chegavam a um terço. A proporção chegava a ficar gritante quando se tratava do cuidado com os filhos: 74 por cento, em relação a 38 dos casais heterossexuais.

Como estes, entre os pais gays geralmente um se habilita a parar ou reduzir a carga horária de trabalho. Entre os casais de homens, há a mesma porcentagem de pais que ficam em casa quanto entre os heterossexuais; a diferença é que as chances de especificarem "tarefas femininas" àquele que passa mais tempo em casa são bem menores. E também tendem a discutir as preferências individuais de cada um para quem faz o que em casa. Isso é válido principalmente para os gays e talvez seja por isso que eles demonstrem uma satisfação maior com a divisão de tarefas.

Na questão parental, o fato de os pais do mesmo sexo não poderem se encaixar nos padrões de gênero gera algumas diferenças gritantes. Uma análise da American Time Use Surveys de 2003 a 2013 verificou que os homens que tinham parceiras mulheres passavam menos tempo do tempo total e a menor proporção do tempo livre engajados com os filhos. As mulheres com parceiras passavam mais tempo.

Mas os homens com parceiros do mesmo sexo passavam tanto tempo com os filhos quanto as mulheres médias casadas com homens. O resultado? As crianças que moram com pais do mesmo sexo convivem com os pais, em média, três horas e meia por dia; as que têm pais heterossexuais, duas horas e meia.

O estudo também mostra que pais gays e mães lésbicas têm mais probabilidade de interagir mutuamente com os filhos. Em famílias tradicionais, ao contrário, a mãe é quem toma a iniciativa e o pai fica de coadjuvante ou faz atividades paralelas.

Outra vantagem parental para os homossexuais é que eles raramente têm um filho indesejado ou não planejado, o que representa um risco para a parentalidade deficiente. Em 2011, último ano para o qual existem dados disponíveis, 45 por cento das gestações nos EUA foram acidentais, e 18 por cento, indesejadas. Se os oponentes ao controle de natalidade e ao aborto continuarem a ganhar espaço, os pais de mesmo sexo se verão com cada vez mais vantagens nesse aspecto da vida familiar.

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Há fortes razões históricas para os casamentos heterossexuais serem sujeitos a mais tensão,
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Uma comparação de doze anos em relação à maneira como os casais dão início e lidam com os desentendimentos identificou outras vantagens dos casais homossexuais. Os pesquisadores John Gottman e Robert Levenson concluíram que, em uma briga com o parceiro, gays e lésbicas se comportavam de forma menos agressiva, dominadora e amedrontada do que os indivíduos de sexos diferentes, talvez por não terem de lidar com a mesma bagagem de desigualdade de poder. Assim, usavam mais afeto e humor durante as discussões, tornavam-se menos agitados e se acalmavam mais rapidamente depois.

Mesmo no dia a dia, gays e lésbicas usam métodos mais positivos para influenciar o parceiro, usando o encorajamento e o elogio em vez de críticas, sermões ou apelos para estimular o remorso e a culpa no outro.

Um aspecto positivo característico dos casais gays é que a tendência de discutir abertamente as respectivas preferências se estende também para a sexualidade, incluindo escolhas que podem espantar alguns heterossexuais. Por exemplo, embora a extensão da não monogamia nos relacionamentos homossexuais masculinos seja quase sempre exagerada, as relações oficialmente abertas são mais comuns entre eles do que entre lésbicas e heterossexuais. Muitos inclusive definem acordos detalhados sobre os tipos de contato sexual permitidos fora da relação, sob que circunstâncias e com que frequência.

Notadamente, porém, embora o namoro entre homens seja menos estável do que o das lésbicas e dos heterossexuais, a união formal deles é tão sólida quanto a destes últimos, e mais que as uniões entre mulheres.

A socióloga Virginia Rutter, coautora de "The Gender of Sexuality", alega que os casais heterossexuais poderiam alcançar um nível maior de intimidade e evitar crises destrutivas em seus relacionamentos se também falassem de seus desejos e ambivalências sexuais com mais franqueza.

Por outro lado, os casamentos homoafetivos também são afetados pelas expectativas de gênero que permeiam nossa sociedade, talvez de formas surpreendentes; gays e lésbicas internalizam muitas dessas atitudes, ainda que tenham rejeitado ou modificado os limites que elas impõem, o que torna mais provável o compartilhamento de suas prioridades e hábitos.

A mulher, por exemplo, há muito é socializada para acreditar que dar e receber apoio emocional é uma obrigação rotineira, algo que, como pôr comida na mesa, deve ser feito todos os dias. Para Debra Umberson, socióloga da Universidade do Texas, a mulher tende a se dedicar integralmente à antecipação, compreensão e reação às necessidades físicas e emocionais do parceiro.
Só que isso funciona de um jeito totalmente diferente quando ela está em um relacionamento com outra mulher. Entre lésbicas, há uma reciprocidade muito maior no que se refere ao nível de cuidado; ambas se mostram atentas às necessidades e preferências da parceira, reagindo ativamente a elas. Já no casamento heterossexual, o marido, além de dar como certo esse tipo de atenção, não reconhece a dedicação da mulher e geralmente não vê a necessidade de apoio emocional da parte dela", explicou a professora em entrevista.
Casais de gays também mostram reciprocidade na questão desse desvelo, embora com menos intensidade que as mulheres. Como os homens heterossexuais, os parceiros geralmente valorizam mais a preservação da autonomia emocional e da independência do que o rompimento de barreiras com o objetivo de conquistar uma maior intimidade.
O gay é mais comedido que a mulher, oferecendo cuidado emocional e instrumental ao parceiro quando a necessidade é clara, sem tratar a questão como uma obrigação rotineira; e justamente por isso a tendência é não esperar esse tipo de comportamento, a menos que peça explicitamente — afirma Umberson.
Mas talvez justamente por não ter uma mulher em casa para "controlar" a temperatura emocional, o gay é muito mais consciente que o homem heterossexual da atenção à necessidade de apoio emocional do parceiro, de modo que possa oferecê-la quando realmente for necessária.

O que não significa dizer que os casais de gays e lésbicas têm todas as respostas para os heterossexuais que querem se livrar dos hábitos do casamento tradicional; uma dose dupla de socialização masculina ou feminina também tem lá seus problemas. A mulher se dedica mais a manter e aprofundar a intimidade do que a maioria dos homens e tem uma expectativa muito maior de empatia e apoio emocional. Também monitora a qualidade da relação mais de perto e tem padrões mais altos para ela.

Essas características podem produzir relacionamentos excepcionalmente íntimos e solidários, mas também consomem muita energia e geram estresse e decepção – o que talvez explique por que as relações lésbicas, apesar da alta qualidade, em média, tenham uma proporção maior de rompimento que as parcerias de casais heterossexuais e/ou gays.

Estes, por sinal, também têm vulnerabilidades relacionadas à socialização de gênero. No estudo de Gottman e Levenson, a única exceção à maior positividade dos casais de mesmo sexo ocorria quando um dos parceiros se tornava particularmente negativo na defesa de seu argumento. Nessas ocasiões, o companheiro achava mais difícil levar a conversa de volta para um nível menos beligerante do que os heterossexuais e as lésbicas. É possível que essa tendência de descambar para a hostilidade esteja relacionada com a socialização masculina que gera raiva quando o homem se sente desrespeitado.

Todos nós — heterossexuais, gays ou lésbicas — temos dificuldades em saber como substituir as regras tradicionais de gênero e casamento que frustram nossos valores mais modernos e adaptar/atualizar as que continuam sendo úteis. E o que funciona em algumas relações nem sempre dá certo em outras.

O que é mais um motivo para se abrir à existência e à visibilidade de outros modelos que ofereçam dicas de como tornar o casamento mais bem-sucedido. Kristi Williams, editora do "The Journal of Marriage and Family", por exemplo, se diz curiosa para ver como os norte-americanos de gênero fluido, cada vez mais comuns, negociarão seus relacionamentos.
Com a evolução e a diversificação das famílias, teremos novas oportunidades de aprender mais uns com os outros — ela aposta.
Clipping Estudos mostram que casais homoafetivos são mais felizes. O que eles podem ensinar aos heterossexuais?, por * Stephanie Coontz, O Globo, 26/02/2020 

* Stephanie Coontz, autora de "Marriage, a History: How Love Conquered Marriage", é diretora de pesquisa e educação pública do Conselho de Famílias Contemporâneas.

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