A história da freira Juana Inés virou uma série da Netflix com temática lésbica |
Em 2005, Jeannine Gramick, freira americana e co-fundadora da organização New Ways Ministry, de apoio à comunidade LGBT católica, disse, durante estadia no Brasil para participar do 13º Festival de Cinema e Vídeo da Diversidade Sexual, que em seu convento havia freiras lésbicas:
Uma noviça comentou que, antes de entrar no convento, foi a um bar de frequência gay na cidade. Depois daquele episódio, soube que havia lésbicas no que eu estava", explicou, afirmando que todas deveriam se assumir: "Quando Paul Newman aparece na tela, as heterossexuais suspiram. As lésbicas não podem fazer o mesmo quando é a Jane Fonda?".
Jeannine Gramick em apoio ao casamento igualitário |
A presença de lésbicas em conventos parece não ser novidade para historiadores que estudam esse assunto. Eles relatam histórias de mulheres, que, à força ou por vontade própria dentro deles, tiveram a possibilidade de expressar sua liberdade, inclusive sexual, até serem reprimidas.
Noviças rebeldes
No livro Atos Impuros, em português, a historiadora Judith C. Brown, da Universidade Wesleyan, nos Estados Unidos, cita o caso sexual entre as freiras italianas Benedetta Carlini e Bartolomea Crivelli, ocorrido por volta de 1620, durante o Renascimento. Benedetta, que foi enviada a um convento na Toscana pelos próprios pais, começou a ter visões perturbadoras e, segundo a autora, "usava sua possessão por um espírito masculino como explicação para os atos com a colega", que foi nomeada sua cuidadora durante seus "períodos de êxtase".
Alguns anos depois, durante uma investigação encomendada pela Igreja, descobriu-se que as freiras mantinham relações sexuais há anos. O caso resultou na separação das duas e o pouco que se sabe é que Benedetta foi enviada para uma prisão, onde permaneceu até morrer.
Sua história inspirou uma peça teatral da dramaturga canadense Rosemary Rowe e o filme biográfico francês e holandês "Benedetta", previsto para ser lançado em 2020.
As freiras italianas Benedetta e Bartolomea viveram um caso em um convento da Itália e Bendetta foi presa por isso. |
Conventos já foram mais liberais
Se hoje os conventos transmitem a ideia de serem locais humildes, tranquilos e acessíveis, antes, alguns deles eram bem diferentes. Na América colonial, entre os séculos 16 e 17, por exemplo, havia conventos em que ocorriam bailes, apresentações de teatro, debates intelectuais e as freiras podiam ter acomodações luxuosas, com direito a criadas e escravas, usar joias, receber visitas da corte e estudar livros proibidos pela Igreja.
Um convento, muitas vezes, significava acesso a um melhor e mais seguro padrão de vida", comenta a historiadora Sarah Rees Jones, da Universidade de York, no Reino Unido, e autora do livro "Cristãos e Judeus na Inglaterra Angevina", em português.
Em um desses conventos, no México, viveu Juana Inés de la Cruz, freira por escolha própria e poetisa do século 17, que dedicou versos elogiosos e de amor para várias mulheres de seu convívio, como para Maria Luísa Manrique y Gonzaga, vice-rainha da Nova Espanha: "pois você sabe que as almas/ ignoram distância e sexo" e "quando minha/te chamo, não pretendo/que julguem que és minha,/só que eu ser tua quero".
Segundo Alicia Gaspar Alba, pesquisadora da Universidade da Califórnia e autora do livro "[Un]framing the 'Bad Woman'": "Juana foi uma feminista lésbica chicana". Chicano é um termo para designar cidadãos de origem mexicana.
Apesar da afirmação de Alba, não há um consenso entre os historiadores a respeito disso, por falta de provas. Sendo uma freira poetisa famosa e tendo contato com a corte, era mais fácil despistar a Inquisição. Para ter ideia, com a publicação do primeiro livro da freira, "Inundação Castálida", de 1689, uma nota esclarecendo sua "amizade casta" com a vice-rainha foi logo anexada nele explicando que havia "na poetisa um amor a Sua Excelência com puro ardor".
Em 2016, Juana virou protagonista da série da Netflix "Juana Inés", na qual é apresentada como uma freira feminista, que vive relacionamentos lésbicos em uma época de opressão.
Carta de amor
Além de poemas, cartas também foram escritas em conventos. Em 2018, Erik Wade, professor medievalista da Universidade de Bonn, na Alemanha, compartilhou em seu Twitter uma carta de amor entre duas freiras e amantes do século 12 que parecem ter sido separadas. As duas, sem nomes identificados, são representadas no documento pelas letras C e B. Na ocasião, Wade escreveu: "Eu li isto em uma classe e 'chorei de amor'".
A carta foi extraída do livro "Latim Medieval e a Ascensão do Amor-Lírico Europeu", do pesquisador e membro da Academia Britânica Peter Dronke. Abaixo, a versão em português:
"Para C-, mais doce que mel ou favo de mel, B- envia todo o amor que existe para o seu amor. Você que é única e especial, por que você demora tanto tempo, tão longe? Por que você quer que sua única morra, alguém que, como você sabe, te ama com alma e corpo, que suspira por você a cada hora, a todo o momento, como um passarinho faminto.
Desde que eu tive que ficar sem sua doce presença, eu não queria ouvir ou ver qualquer outro ser humano, mas como a pomba, tendo perdido sua companheira, empoleira-se para sempre em seu pequeno ramo seco, então eu lamento sem fim até que eu aproveite sua confiança de novo. Eu olho e não encontro minha amante -- ela não me conforta nem com uma única palavra. De fato, quando reflito sobre a beleza de sua fala e aspecto mais alegre, fico completamente deprimida, pois não encontro nada que eu possa comparar com seu amor, doce além do mel e do favo de mel, comparado com o brilho do ouro e da prata.
O que mais? Tudo em você é gentileza, perfeição, então meu espírito definha perpetuamente por sua ausência. Você é desprovida da ousadia de qualquer falta de fé, você é mais doce que leite e mel, você é inigualável entre milhares, eu te amo mais do que qualquer outra. Você é o meu amor e desejo, você é o doce resfriamento da minha mente, não há alegria para mim em qualquer lugar sem você. Tudo o que foi delicioso com você é cansativo e pesado sem você.
Então eu realmente quero te dizer, se eu pudesse comprar a sua vida pelo preço da minha, [eu faria] instantaneamente, pois você é a única mulher que eu escolhi de acordo com o meu coração. Por isso, rogo a Deus que a morte amarga não venha a mim antes que eu desfrute da visão desejada de você novamente. Adeus. Tens de mim toda a fé e amor que existem. Aceite a escrita que envio e, com ela, meu constante pensamento".
Clipping Freiras lésbicas: encontros secretos no convento e troca de cartas de amor, por Marcelo Testoni, 27/05/2019
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