O Retrato da Garota em Chamas |
Filme com romance lésbico volta a chamar atenção em Cannes
Desde que o Festival de Cannes foi tragado, a partir do ano passado, pelo furor do movimento feminista #MeToo, a principal mostra de cinema tem sido questionada sobre a ainda incipiente participação de diretoras mulheres e respondido de forma às vezes precipitada à grita, selecionando obras marqueteiras e com pouca substância.
O filme “Portrait de la Jeune Fille en Feu”, da francesa Céline Sciamma, talvez seja o primeiro exemplo de um longa que responde diretamente aos anseios de tais grupos identitários sem sacrificar a consistência ou cumprir cota.
O longa costura uma elegante ambientação de época com uma observação incisiva sobre as discrepâncias entre o olhar feminino e o olhar masculino, que servem tanto ao enredo quanto à reflexão sobre gênero nas artes, em especial no cinema.
Na Bretanha do século 18, a jovem Marianne (Noémie Merlant) é chamada a servir como dama de companhia à nobre Héloïse (Adèle Haenel), que acaba de deixar o convento e está prometida a um rico milanês. O que a filha de condessa não sabe é que a recém-chegada é uma pintora que foi incumbida de fazer um retrato seu para enviá-lo ao futuro pretendente.
Tudo precisa ser segredo. O último retratista foi enxotado por Héloïse, contrariada pela ideia do matrimônio, mas deixou uma tela incompleta e com um borrão no lugar no rosto. Caberá a Marianne completar o desenho às escondidas.
Os olhares penetrantes da pintora, que no princípio servem apenas para captar os traços da outra, logo evoluem para um interesse mútuo e as encaminha para um proibido romance lésbico. Ao final, não se sabe se a garota em chamas do título é que é objeto do retrato e que será rifada em casamento ou se é a que o pinta e que está consumida pelo desejo.
A cineasta, que já abordou aspectos da feminilidade em “Tomboy” e “Garotas”, usa as diferentes perspectivas entre os retratistas para tecer comentários sobre o que é arte produzida por mulher e o que é arte produzida por homem.
Nesse esforço, ela dialoga com as formas com que personagens femininas têm sido mostradas no cinema —sua delicadeza não poderia ser mais oposta, por exemplo, do registro voyeur de Abdellatif Kechiche e seu “Azul É a Cor Mais Quente”, vencedor da Palma de Ouro em 2013.
A questão do ponto de vista é tão central que a diretora ainda costura à história referências ao mito de Orfeu, aquele que perdeu sua amada justamente porque olhou para ela.
Rival de Céline Sciamma na disputa pela Palma de Ouro, o diretor canadense Xavier Dolan foi um dos que não se contiveram e correram às redes sociais para se derreter pela obra. “Me senti confortável, tanto romântica quanto psicologicamente diante da ausência de personagens homens”, escreveu.
Fonte: Folha de SP, 20/05/2019
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