Gilberto, Rafaela, Paulo Henrique e Rodrigo mostram que o carinho e o acolhimento foram essenciais em casa, assim como em qualquer família |
Famílias formadas por pai, mãe e filhos já não são maioria no país
A sociedade brasileira se acostuma com uma mudança, cada vez mais visível, da configuração tradicional das famílias no país
O tradicional arranjo de família — com pai, mãe e filho(s) — mudou. Além das formações convencionais, novas configurações crescem e mostram desafios diários enfrentados por mães e pais sozinhos, divorciados que unem as famílias, crianças que são criadas pelos avós, coparentalidade e casais homoafetivos que lutam para que seus afetos sejam respeitados. O que há de comum entre eles é o amor, cada um à sua maneira. As diferentes formas de composição familiar mostram que o gênero, a idade e o status civil de quem cria não importam; prevalecem sempre o respeito e a união.
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) revelam que, desde 2005, o perfil composto unicamente por pai, mãe e filhos deixou de ser maioria nos domicílios brasileiros. No estudo, o tradicional arranjo ocupava 42,3% dos lares pesquisados — uma queda de 7,8 pontos percentuais em relação a 2005, quando abrangia 50,1% das moradias.
Moradores de Teresópolis (RJ), o jornalista Gilberto Scofield Junior, 53 anos, e o corretor de imóveis Rodrigo Mello, 34, vivem juntos há 15 anos e oficializaram a união na última sexta-feira. Eles são pais de Paulo Henrique, 9, e Rafaela, 18, que personificaram um grande sonho do casal. O processo de adoção do menino durou cerca de um ano e meio. Paulo chegou a ser rejeitado por três casais heterossexuais e acabou adotado em 2014. Rafaela foi acolhida dois anos depois.
A vida do casal mudou completamente em 23 de outubro de 2014, quando o companheiro Rodrigo recebeu a notícia de um grupo de entidades de adoção sobre a disponibilidade de Paulo, que, à época, tinha 4 anos. Ele estava em um abrigo na cidade de Capelinha (MG), no Vale do Jequitinhonha.
Foram sete horas de viagem, entre carro e avião. A primeira impressão foi emocionante, ele era muito carente, muito carinhoso. Quando chegamos lá, descobrimos que ele tinha uma irmã, a Rafaela. Naquele momento, não estávamos preparados para adotar os dois. O juiz pediu para não tirar o contato com ela, e eles iam se falando”, conta Gilberto.
Até a adoção de Rafaela, muito aconteceu. A decisão de aumentar a família veio após um período de trabalho na China. “Por conta da política de filho único (no país oriental), as meninas eram abandonadas, principalmente no interior. Ficamos tocados com isso e a ideia amadureceu”, lembra Gilberto. O carinho e o acolhimento se tornaram os ingredientes necessários para romper as barreiras da adaptação.
É um pouco mais difícil quando é uma criança que não acompanhamos desde o início. Buscamos entender a psicologia por trás das ações e preencher instintivamente lapsos passados. O acolhimento fez com que as crianças se adaptassem. Paulo foi rapidamente ambientável. Rafaela, por ser maior e estar na fase da adolescência, levou mais tempo”, conta.
Gilberto, Rodrigo, Paulo Henrique, Rafaela e os animais de estimação da casa formam uma família como qualquer outra; lidam com as alegrias e as preocupações diárias similares às de pais tradicionais. Questionado sobre a aceitação dos filhos em relação à presença de dois pais em casa, Gilberto afirma que são bem resolvidos.
Os amigos perguntam: São dois pais? Eles respondem que sim e não questionam mais. O colégio deles é progressista.
Para Gilberto, o estranhamento da sociedade é ligado ao preconceito dela e da maneira como julgam as pessoas que não seguem os padrões considerados tradicionais, da heteronormatividade.
Educar é um exercício diário. Isso se passa exercendo, dando exemplo. Negociamos na base da conversa, mas isso não me impede de ser rígido quando preciso, de cobrar disciplina. Buscamos convencer, inspirar naturalmente”, diz. Paulo Henrique, inclusive, fala com emoção sobre o relacionamento com os pais e garante: “Amo meus pais. Eles fazem tudo por nós e nos amam muito. Carinho é o que não falta”.
Mari Mira e Patrícia Egito, ambas com 32 anos, se conheceram há cinco anos no trabalho. Pati era produtora cultural do antigo Balaio Café e Mari atuava como VJ e produtora cultural no local. Não demorou para que se tornassem amigas. Logo se apaixonaram e pouco tempo depois estavam morando juntas. Este ano, decidiram fazer uma festa para celebrar a união entre elas. Foi uma forma de reunir os amigos e os familiares “na luta pelo bem viver das famílias LGBTs”.
Sentimos a importância e a necessidade de reafirmar nosso amor perante a sociedade. Queremos nos tornar visíveis, tanto ao nosso redor quanto dentro das estatísticas. Fizemos para mostrar que casais como nós existem e nossos afetos devem ser respeitados e legitimados sempre. ‘Amor como luta’ foi a frase que norteou a nossa cerimônia”, explica Mari.Sócias em um restaurante de gastronomia brasileira há três anos, já compartilhavam, sob o mesmo teto, angústias, realizações e alegrias. Tudo isso envolto numa relação de respeito e apoio das famílias de ambas.
Elas são muito integradas à nossa vida. Sabemos que isso é um privilégio e somos muito gratas. Juntas, nós nunca sofremos preconceito, mas, nas nossas vidas individualizadas, sim. São histórias que já estão gastas, queremos falar de outras coisas”, pontua.
A psicóloga e economiária Márcia Lopes, 56, é mãe solo e enxerga a estruturação da família como algo que perpassa qualquer rótulo. O importante é o carinho, o respeito e a união. A filha Rayssa, de 33 anos, nunca teve contato com o pai — e sempre foi algo muito bem resolvido na conjuntura familiar. Isso porque, explica Márcia, a rede de apoio dela se manteve muito consistente, com o apoio de pais, tios e primos.
Sei que sou muito privilegiada, porque sempre tive apoio emocional e financeiro. Mas reconheço as dificuldades das mulheres que resolvem ser mães sozinhas e não têm essas condições. É um caminho muito mais árduo, com diversos obstáculos e desafios”, destaca.
A vida de Márcia mudou desde quando se tornou mãe. Apesar dos desafios de conduzir sozinha a educação de uma pessoa e de arcar com todos os custos disso, a psicóloga afirma que nunca se sentiu só. Evidentemente, quando situações difíceis acontecem, gostaria de ter com quem desabafar, mas nada que a família não consiga dividir.
A maternidade mudou a minha vida. A gente passa a repensar prioridades e abre mão de alguns desejos pessoais em prol de outro alguém. É muito prazeroso”, conta, emocionada.Ela ressalta as mudanças na sociedade que, mesmo lentas, já amenizaram o preconceito em torno de mães solo:
Hoje em dia, não é algo tão incomum. Naquela época, era mais difícil. Mas é muito prazeroso também ouvir pessoas que conhecem a minha história dizendo que me admiram por isso”.
A psicóloga Priscila Preard explica que o conceito de família vai além do compartilhamento consanguíneo.
Família é um lugar em que, independentemente da orientação sexual, condição financeira, existe amor, respeito, diálogo, cuidado, afeto. É com quem compartilhamos os problemas e as conquistas. Família não precisa ser de sangue”.A especialista relata que a diversidade do mosaico familiar começou há muitos anos, com o auxílio de fatores como a entrada da mulher no mercado de trabalho, a chegada da pílula anticoncepcional, a legalização do divórcio e, mais recentemente, com a conquista da união homoafetiva.
Acredito que, no campo homoafetivo, teve o reconhecimento jurídico. Eles galgaram isso e foram para outra esfera, de criar filhos. Em relação aos pais ou mães solo, a mudança vem de muito tempo, desde a Revolução Industrial. A mulher entendeu que o campo amoroso não necessariamente tem a ver com a formação familiar. Também teve a entrada dela no mercado de trabalho, que deu maior independência”, aponta.
No entanto, famílias formadas por homossexuais e pais e mães solteiros ainda enfrentam preconceito na sociedade.
Tanto homoafetivos quanto quem cria sozinho enfrentam preconceito. As dificuldades de quem cria sozinho também são maiores, pois, muitas vezes, não dispõe de uma rede de ajuda, que facilitaria nos cuidados em alguns momentos”, completa.Para ela, é preciso deixar claro que a orientação sexual não dita a capacidade de laço afetivo.
Não é porque é diferente de algum modo que não vai cuidar ou dar amor. É um princípio ético. A sociedade precisa entender que, por mais que não ame ou goste daquele modelo familiar, tem que respeitar e considerar o próximo. Pode não ser a favor, mas tem que respeitar”.
Família é um lugar que, independentemente da orientação sexual, condição financeira, existe amor, respeito, diálogo, cuidado, afeto. É com quem compartilhamos os problemas e as conquistas. Família não precisa ser de sangue” Priscila Preard, psicólogaFonte: Correio Brasziliense, por Ingrid Soares e Gabriela Vinhal, 25/12/2018
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