Crítica: L, o musical fala de estupro e lesbofobia sem perder o humor
Espetáculo fica em cartaz na capital até o dia 1° de setembro
Como falar de preconceito e de crimes como o chamado 'estupro corretivo', que é cometido contra mulheres lésbicas, numa comédia musical? A ideia do diretor Sérgio Maggio era interessantíssima desde o começo: realizar uma montagem que tivesse como personagens 'mulheres que amam mulheres' e cuja dramaturgia dialogasse com o repertório da MPB.
Como falar de preconceito e de crimes como o chamado 'estupro corretivo', que é cometido contra mulheres lésbicas, numa comédia musical? A ideia do diretor Sérgio Maggio era interessantíssima desde o começo: realizar uma montagem que tivesse como personagens 'mulheres que amam mulheres' e cuja dramaturgia dialogasse com o repertório da MPB.
Sem cair num tom panfletário, L, O Musical é um espetáculo que brinda a vida e exalta a liberdade, o desejo e os afetos femininos, e está lotando o teatro do Centro Cultural Banco do Brasil de Brasília (CCBB) com total entusiasmo e engajamento do público. Na capital federal, fica até 1º de setembro; depois segue outubro, novembro e dezembro no Rio de Janeiro, janeiro e fevereiro em São Paulo, março e abril em Belo Horizonte.
Despretensioso, o texto é bem construído e conectado com o conteúdo de canções de compositoras brasileiras, muitas delas lésbicas assumidas, como Angela Ro Ro, Zélia Duncan e Adriana Calcanhotto. A agulha e a linha – conduzidas por Maggio e pelo diretor musical Luis Filipe de Lima, com o diretor-assistente Jones de Abreu – alinhavam bem uma narrativa às outras.
O público é apresentado a um momento da história de Ester Rios (a histriônica novelista interpretada por Elisa Lucina); sua ex-amante, a atriz Ruth D’Almeida (Ellen Oléria); a coautora de novelas Anne, (Renata Celidônio), que é casada com um homem mas se descobre apaixonada por Ester; e a namorada de Ruth, a militante LGBT Simone (Gabriela Correa). No elenco ainda estão Tainá Baldez (Elle, filha de Ruth) e Luiza Guimarães (Xena/Léa/Pietra/Felipa).
Com cenário simples assinado por Maria Carmen de Souza – basicamente um tablado redondo, manequins de vitrine, uma cortina diáfana branca, almofadas e, em posição privilegiada, a maravilhosa banda composta por mulheres – a montagem utiliza de rápidos movimentos de palco das coxias para o proscênio (centro do palco), ou do fundo do teatro para a frente.
São destaques o desenho de luz de Aurélio de Simoni e o trabalho de movimento e coreografia realizado pela experiente bailarina, atriz e diretora Ana Paula Bouzas, que permitiu mesclar os tempos e locais diversos das cenas que movimentam a trama em espaço tão exíguo. Sara Mariano fez um ótimo trabalho de preparo vocal com as atrizes, que são acompanhadas pelas tarimbadas musicistas Carolina Setubal (baixo), Marlene Lima (guitarra), Nathália Reinehr (bateria) e Janá Sabino (teclado).
Criado pelo coletivo Criaturas Alaranjadas Núcleo de Criação Continuada, o musical se opõe à intolerância e à lesbofobia, e mostra as peripécias de Ester, Ruth, Anne, Simone, Elle, Filipa, Léa e Xena sob a perspectiva de mulheres que amam mulheres. No texto, palavras jocosas são ditas com naturalidade e cumplicidade humorada do público, e as piadas envolvem o “universo sapatão”.
Há diversas citações e referências, como por exemplo a menção à peça e filme As lágrimas amargas de Petra von Kant, do alemão Rainer Fassbinder, que tem protagonistas lésbicas e, no Brasil, teve uma premiadíssima montagem com Fernanda Montenegro e Renata Sorrah nos papéis principais na década de 80.
No meio do musical, há um exercício de metateatro com uma cena original mesclada a uma de 'As lágrimas'. O nome da personagem Filipa, por sua vez, é, provavelmente, uma referência a Filipa de Sousa, portuguesa acusada de “práticas nefandas”, leia-se acusada de ser lésbica, pelo Santo Ofício na Bahia, no século XVI.
O fato de o diretor ser um homem não mudou nada a proposta de se falar desse universo feminino tão específico. É visível que, no processo criativo, as intérpretes puderam brincar com o texto. As intervenções de Ellen Oléria e Elisa Lucinda são muito orgânicas, assim por dizer, e revelam uma total cumplicidade e um elo afetivo que se estende às outras atrizes. Renata Celidônio também se destaca pelo desempenho vocal, agilidade e timing de humor.
Responsável por muitos dos momentos mais engraçados da peça, Luiza Guimarães interpreta Xena Charme, a produtora que recebe o público; a youtuber Léa Secret (que aparece em hilárias inserções durante a montagem); Filipa e Petra. É também uma das atrizes atuantes em Brasília (junto com Gabriela Correa e Tainá Baldez) que a montagem levará como grata revelação ao público e imprensa cariocas.
Em sua segunda direção de musicais (o primeiro foi Eu vou tirar você deste lugar – As canções de Odair José), Sergio Maggio obteve um resultado muito mais consistente e conseguiu a proeza de um espetáculo leve, engraçado, e ao mesmo tempo engajado, em que o público se envolve, bate palmas em cena aberta e parece absorver com prazer as mensagens cidadãs embaladas como biscoito fino.
Serviço
L, o musical
Centro Cultural Banco do Brasil (SCES, Tc 2). Até 1º de setembro, de quarta a domingo, às 20h. Nos dias 13/8 e 19/8, sessão extra, às 16h30. Não recomendado para menores de 16 anos.
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