Ativistas do lésbico-feminista em passeata contra a violência policial |
Meus anos sob o regime militar e o surgimento do movimento homossexual no Brasil
Entrei na adolescência quando do início do regime militar que se estendeu por 21 anos. Não tenho memória do período pré e imediatamente pós deposição do Jango porque só tinha 10 anos. Dos anos seguintes, já me lembro melhor: foram os anos dos festivais e dos programas da TV Record (Bossaudade, Fino da Bossa, Jovem Guarda, O Pequeno Mundo de Ronnie Von). Curtia todos ecleticamente e torcia também ecleticamente pelas músicas engajadas ou inovadoras dos festivais, com predileção pelas últimas. Os tropicalistas Gal, Caetano, Gil, os Mutantes, etc., foram os que realmente fizeram minha cabeça, o disco Panis et Circencis (1968) rodando na vitrola sem parar. Mas também me emocionei com a Pra Não Dizer que não falei das flores (1968), do Vandré, muito pobre esteticamente se comparada à Sabiá, do Chico Buarque e Tom Jobim, mas um hino de época contra o regime autoritário. Hoje, nessa onda retrô que nos assola, costuma ser entoada em passeatas avermelhadas pelo Brasil afora, mas com um cheiro de mofo descomunal.
Com o Ato Institucional 5 (AI-5-13/12/1968), os militares escancararam sua ditadura, fechando o Congresso, censurando a imprensa e a cultura, restringindo os direitos civis, reprimindo desde os que a ela se opunham abertamente até a quem era apenas suspeito do que chamavam de subversão. E, naquela mistura de rigidez militar e conservadorismo moral que caracterizou os chamados anos de chumbo, subversivos podiam ser desde os guerrilheiros do Araguaia até a barriga grávida da Leila Diniz exposta nas praias do Rio.
Não deixa de ser curioso observar, contudo, que, apesar do clima antissubversivo, muito da grande revolução de costumes que rolava no exterior conseguiu aparecer por aqui. A versão brasileira da peça Hair (1969 a 1972) trazia o hippismo aos tupiniquins, terminando com os atores nus no palco, e a androginia dava as caras com os bailarinos do Dzi Croquettes (1972-73) e os cantores e compositores dos Secos e Molhados (1973-74). Assisti a todos em teatros de Sampa. Fora naturalmente todo o pacote da contracultura, filha do anarquismo pacificista, com sua mistura de drogas, amor livre e rock'n'roll, que chegava via discos dos festivais de Woodstock (1969), Altamont (1969), Ilha de Wight (1970), os Beatles e os Rollings Stones, David Bowie, Janis Joplin, Jimmi Hendrix, Jim Morrison (pra citar alguns) e a coluna Underground do Pasquim. Sem esquecer também os icônicos shows de Gal Costa e Maria Bethânia, Fatal(1971) e Rosa dos Ventos (1971), com Gal incorporando a musa libertária tropicalista por boa parte da década de 70. Todos também rolando em minha vitrola sem parar.
No bojo da contracultura e da revolução sexual, igualmente vieram as mudanças no papel da mulher e a saída do armário da homossexualidade, culminando, no fim dos anos 70, com o surgimento das primeiras organizações feministas (segunda onda) e homossexuais brasileiras. Ainda foi aprovada a lei do divórcio, em 1977, não sem os protestos dos grupos conservadores que tomaram as ruas pra entoar seu eterno mantra da “defesa da família.” Volto aos movimentos adiante.
O fato é que, apesar da ditadura militar e até por causa dela, muita coisa mudou no país tanto em termos estruturais quanto na área de costumes. Na verdade, ouso dizer que a ditadura passou ao largo da maioria dos brasileiros da época, sobretudo no período do milagre econômico (1969-1973), quando o excepcional crescimento do país, as grandes obras de infra-estrutura, a expansão do emprego, e a ascensão de uma nova classe média, tudo embalado com a conquista da Copa em 1970 e o ufanismo nacional-desenvolvimentista dos militares tiraram a atenção das pessoas dos mortos e desaparecidos nos porões da ditadura.
Fomos sitiados em um estacionamento que havia em frente ao TUCA em 1977 |
Eu mesma só fui me defrontar com o poder repressivo dos militares quando, já nos tempos de faculdade, resolvi protestar nas ruas por democracia, no ressurgimento do movimento estudantil, e acabei presa durante a famigerada invasão da PUC-SP (22/09/1977) pela PM do coronel Erasmo Dias e agentes do DOPS. Fui presa, levada para o Batalhão Tobias Aguiar, fichada e fotografada, e lá passei uma noite em claro temendo por meu destino. Pelo menos, não me feri, ao contrário de outras pessoas que, na citada invasão, foram inclusive queimadas pelos petardos da polícia. A repressão às manifestações estudantis que ressurgiam era constante (cheirei muito gás lacrimogêneo nelas), mas a invasão da PUC-SP se destacou pela brutalidade, com a universidade sendo literalmente invadida pela tropa de choque e tendo suas dependências destruídas. Consta que cerca de 700 pessoas foram presas.
Antes desse período de cara-a-cara com os milicos, contudo, a ditadura parecia algo distante pra mim, e a repressão que sofri de fato vinha da família e da sociedade em geral contra minha homossexualidade. Ao contrário de hoje, ninguém apoiava homossexuais, a homossexualidade ainda era considerada doença, e a vida dupla e a marginalidade se apresentavam como fado inevitável.
E talvez tenham sido a repressão e o destino que me levaram a entrar no grupo que daria início ao movimento homossexual no Brasil. Informada por uma colega já falecida, Vilma Monteiro, que o grupo Somos (de Afirmação Homossexual) iria participar de um debate, na Ciências Sociais da USP, em fevereiro de 1979, resolvi conferir a ousadia. A essas alturas também já era leitora do tablóide Lampião da Esquina (1978-1981), do Rio (a primeira publicação LGBT de distribuição nacional), e bem interessada no incipiente gay power tupiniquim.
Matéria que dará origem ao Grupo Lésbico-Feminista |
A partir do contato feito com os rapazes do Somos durante o referido debate, polêmico porque a esquerda da época era bem heterossexista, comecei a participar do grupo, no começo com outras raras mulheres, depois com um número considerável de moças a ponto do Lampião da Esquina ter solicitado uma matéria sobre lésbicas para sua edição de maio de 1979. Formou-se um coletivo com as mulheres do Somos para a produção dessa matéria que, logo em seguida, daria origem ao subgrupo de mulheres da organização, chamado grupo lésbico-feminista, do qual fui uma das fundadoras. Em maio de 1980, o Somos sofre um racha, partindo-se em três: os fundadores do grupo, de perspectiva libertária, deixam a entidade, devido a conflitos com integrantes da Convergência Socialista que ficaria com o título Somos, e as mulheres do chamado LF ganham autonomia passando a priorizar ações com o movimento feminista.
Em meados de 1981, o coletivo que formou o grupo lésbico-feminista (LF) já havia se desintegrado, com parte de suas ativistas submergindo no armário feminista, outras saindo do ativismo simplesmente, e outras ainda fundando um outro coletivo, em outubro de 1981. Este coletivo retoma uma das denominações do LF (foram várias) porque se via a princípio, como continuidade deste, em particular pela determinação de manter uma organização específica de lésbicas frente à tendência de fusionismo com o movimento feminista. O grupo foi intitulado Grupo Ação Lésbica-Feminista (GALF), do qual também fui uma das fundadoras, e será a única parte do Somos a perdurar durante toda a década de 80. O Somos propriamente dito, sob mentoria a princípio da Convergência Socialista, depois do antropólogo e escritor argentino Nestor Perlongher (já falecido), desaparece em fins de 1983. Sua contraparte, Outra Coisa de Ação Homossexualista, originária da tendência libertária que saíra do racha de maio 1970, também encerra as portas no início de 1984.
Quando, em abril de 1984, o comício pelas Diretas-Já, em São Paulo, reivindicava o retorno à plena democracia, o incipiente movimento homossexual, tão exuberante em sua breve fase libertária (de 1978 a 1983), entra em profunda crise pela chegada da temida AIDS, que empurra muitos ativistas gays para os grupos de prevenção à síndrome, e pelo próprio contexto sócio-econômico do período. Ironicamente, o retorno paulatino à democracia não foi auspicioso para o movimento até então intitulado exclusivamente como “homossexual”. Só dez anos depois, em 1993, o movimento renasce para dar início a era das ONG e, a partir de 2003, a época da institucionalização, do aparelhamento partidário e da perda de autonomia.
Hoje, quando se completam 50 anos do movimento civil-militar que depôs Jango Goulart da presidência, seguido da instauração do regime militar, em sua diferentes fases, muita fabulação vem sendo dita não só sobre o próprio período ditatorial como sobre o início do movimento homossexual no Brasil. A repressão promovida pelo delegado José Wilson Richetti, de São Paulo, em maio de 1980, nos bares e boates do gueto homossexual do período, extensiva a negros e prostitutas, virou agora uma ação da ditadura contra os homossexuais. Nada a ver.
Em 31 de dezembro de 1978, acabava o AI-5 e, em 28 de agosto de 1979, era promulgada a anistia. Iniciava-se a chamada abertura lenta e gradual da ditadura militar que levaria à redemocratização do país. O Movimento Homossexual nasce, portanto, já num momento de distensão do regime, sem a repressão generalizada do passado, se bem que as sombras do período mais duro da repressão ainda se projetassem sobre a sociedade ocasionalmente. Já era possível fazer manifestações sem ir parar no Batalhão Tobias Aguiar.
A Operação Limpeza, do delegado Richetti, se insere de fato no contexto de moralismo conservador da sociedade da época, somado à ausência de respeito aos direitos humanos das populações marginalizadas, mas não pode ser enquadrada como uma ação específica da ditadura contra homossexuais. Se hoje os LGBT são ainda considerados, por muitos, cidadãos de segunda categoria, na época nem categoria tínhamos. Entretanto, essa situação era comum à população LGBT em todo o mundo ocidental, independente de governos democráticos ou ditatoriais. Basta lembrar que a revolta do bar Stonewall Inn, de 1969, que deu origem ao dia internacional do orgulho LGBT (28 de junho), aconteceu em decorrência do cansaço de lésbicas, travestis e gays, com as constantes batidas que a polícia da cidade de Nova York dava no citado bar, levando gente presa pelo único delito de ser homossexual. E os Estados Unidos foram e continuam sendo a democracia mais estável do mundo.
Estendi essa faixa nas escadarias do Teatro Municipal |
Há quem diga que sofreu repressão durante a passeata que ativistas homossexuais, feministas, do movimento negro, etc. fizeram, no dia 13 de junho de 1980, contra as prisões arbitrárias do citado delegado Richetti. Estive na manifestação e não lembro de qualquer repressão, se bem que medo não faltasse de alguma reação violenta da polícia. Tanto que estendi, em frente às escadarias do Teatro Municipal, com ajuda de uma colega do LF, uma faixa intitulada “Pelo Prazer Lésbico”. E o Richetti não me botou no camburão.
De fato, sofri um maior sufoco quando, em 19/08/193, invadi, com colegas ativistas, as dependências do antológico bar das lésbicas da época, o Ferro’s Bar, em protesto contra a proibição de vender o boletim do Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF) nas dependências daquele sagrado recinto sustentado pelas lésbicas mas onde estas não podiam se expressar. O receio foi maior porque anteriormente já havia sido escoltada pela PM para fora do bar e mesmo pelos seguranças do local na base dos empurrões. Para essa manifestação que encerra o primeiro ciclo do movimento homossexual brasileiro, onde o Somos, o Outra Coisa e o GALF se reuniram pela última vez, conclamamos o respaldo da então vereadora Irede Cardoso e de uma representante da OAB em caso de alguma possível truculência. O evento, contudo, foi um sucesso total e, apesar de uma certa resistência inicial dos proprietários, acabou em concordância e sem mortos nem feridos.
Outra fabulação muito em voga – e não de hoje - é a das feministas socialistas ou congêneres dizerem que o movimento feminista foi solidário às lésbicas desde o aparecimento de suas primeiras organizações. Recentemente, li a feminista Amelinha Teles sair-se com essa em entrevista a propósito do lançamento de um seu livro sobre sua trajetória de guerrilheira e feminista (1975-1980). Além de misturar as datas de surgimento da organização lésbica no país, Amelinha ainda aponta uma integração inexistente entre ativistas lésbicas e feministas que, apesar dos estranhamentos, teria se feito valer desde a década de setenta. A verdade é que o movimento feminista só oficializou seu apoio à causa homossexual em geral e à lésbica em particular durante a Conferência Nacional de Mulheres Brasileiras, em Brasília, dos dias 6 a 7 de junho de 2002. E no que diz respeito às lésbicas, só porque eu estava lá para garantir um destaque, inserido no preâmbulo da Plataforma Feminista da citada conferência, sobre a inestimável colaboração das mulheres homossexuais em apoio à causa das mulheres em geral, pelo direito ao próprio corpo, pela livre orientação sexual, etc. Então, Amelinha Teles se “enganou” em cerca de 23 anos ou mais. Precisa ver se não se enganou também sobre sua trajetória como guerrilheira.
Em suma, nessa rememoração dos 50 anos do movimento civil-militar de 31 de março de 1964 que derrubou Jango da Presidência da República, há um hiperdimensionamento das agruras que o regime militar impôs ao país. A esquerda que foi particularmente perseguida pelos militares e agora se encontra no poder não está apenas buscando o direito à justiça, à memória e à verdade. Está buscando também e sobretudo reescrever a História, pintando o diabo muito mais feio do que de fato era, numa abordagem maniqueísta de um período histórico pelo qual foi igualmente responsável. E, como essa esquerda, dita hoje bolivariana, encontra-se metida em todos os movimentos sociais, decorre que temos muita história desses movimentos sendo recontada para se encaixar numa narrativa pré-determinada.
Meu objetivo, com esse depoimento meio alinhavado, é trazer um outro olhar sobre esse período, fora dessas narrativas pré-determinadas, de alguém que o viveu mas que não pertence a nenhum dos lados antes e hoje de novo em disputa. Para mim, o Brasil tem duas fontes permanentes de atraso: o conservadorismo, sobretudo o religioso, e essa esquerda autoritária e anacrônica que até hoje vê na ditadura cubana um norte e um centro irradiador de uma delirante reedição das repúblicas socialistas bolivarianas bananeiras na América Latina. Precisamos superar esse dois pólos extremos se queremos ter um futuro mais livre em termos econômicos, políticos, sociais e, sobretudo, individuais. Em resumo, um futuro melhor.
Meu objetivo, com esse depoimento meio alinhavado, é trazer um outro olhar sobre esse período, fora dessas narrativas pré-determinadas, de alguém que o viveu mas que não pertence a nenhum dos lados antes e hoje de novo em disputa. Para mim, o Brasil tem duas fontes permanentes de atraso: o conservadorismo, sobretudo o religioso, e essa esquerda autoritária e anacrônica que até hoje vê na ditadura cubana um norte e um centro irradiador de uma delirante reedição das repúblicas socialistas bolivarianas bananeiras na América Latina. Precisamos superar esse dois pólos extremos se queremos ter um futuro mais livre em termos econômicos, políticos, sociais e, sobretudo, individuais. Em resumo, um futuro melhor.
Deixo também abaixo um link, sobre esse tema pungente, para um editorial do Estadão objetivo e equidistante (Meio Século Depois).
Obrigada por nos presentear com esse resumo histórico da nossa odisséia político-social, permeado pela emoção de quem viveu os fatos e precisou de muita coragem para administrar o medo e as incertezas do que viria pela frente...
ResponderExcluirBelo depoimento, Miriam! Aliás, vou continuar cobrando o seu livro. Aliás, cada dia mais necessário, o James Verde continua atacando... Fiquei emocionado em algumas passagens do seu texto, ora parece-me que evoluímos, ora não. Ando com medo do futuro, mas sei que resistiremos.
ResponderExcluirObrigado!
Ricardo Aguieiras
aguieiras2002@yahoo.com.br
Ricardo Aguieiras