No Lar Cristão Ala Feminina, no Mato Grosso, “lésbicas são levadas a deixar a homossexualidade” |
Clínicas prometem tratamento de ‘cura gay’
- Pelo menos seis entidades no país afirmam fazer a chamada ‘conversão da sexualidade’, aponta relatório
SÃO PAULO - O jovem F.G., de 21 anos, dormia quando três enfermeiros entraram em seu quarto e o imobilizaram. A pedido de sua mãe, o então jogador de futebol foi levado sedado de Belo Horizonte para o interior de São Paulo, onde foi internado de maneira involuntária em uma clínica de reabilitação para viciados em drogas. O atleta, que nega ser dependente químico, acusou a mãe de tê-lo internado apenas pelo fato de ser homossexual. O namorado do jovem foi impedido pela família de vê-lo no tempo em que permaneceu no local. Ele ficou na clínica por mais de dois meses, nos quais chegou a permanecer por algum tempo em uma espécie de “solitária”.
O caso, que desde 2009 tramita em segredo judicial e foi levado ao Ministério Público, não é a única denúncia feita por violação de direitos humanos a homossexuais contra clínicas de reabilitação ou comunidades terapêuticas. Um relatório produzido pelo Conselho Federal de Psicologia (CFP), com a colaboração da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), revela indícios de que instituições que oferecem tratamento a dependentes químicos no país tratam com preconceito gays e lésbicas e, algumas delas, inclusive submetem os internos a processos de conversão da sexualidade.
Ao todo, segundo o documento, há indícios de que pelo menos seis delas realizam o que chamam de “libertação” de internos homossexuais.
As unidades são, na sua maioria, de orientação religiosa — evangélicas e católicas — e estão distribuídas em Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pernambuco e Sergipe. O relatório aponta, por exemplo, que na Associação Beneficente Metamorfose, em Goiás, “os casos de diversidade sexual são estimulados a ser libertados”.
Na Fazenda Esperança, no Sergipe, a instituição “recebe homossexuais que, por motivos pessoais, desejem se internar para tentar deixar esta orientação sexual”. No Esquadrão da Vida, no Mato Grosso do Sul, “a instituição não permite nem a manifestação nem a prática da homossexualidade e realiza um trabalho religioso para converter o interno”.
‘Trabalho de libertação’
O relatório aponta, por exemplo, que no Lar Cristão Ala Feminina, no Mato Grosso, “lésbicas são levadas a deixar a homossexualidade”. Em conversa pelo telefone, uma funcionária confirmou ao GLOBO que a entidade aceita homossexuais que não necessariamente sejam dependentes químicos.
— No caso, é só um trabalho de libertação. São quatro cultos por dia e tem um culto à noite. Aí vai trabalhando, vai libertando — relatou uma funcionária, sem se identificar.
O coordenador da Comissão Nacional de Direitos Humanos do CFP, Pedro Paulo Bicalho, atribui os casos de violação de direitos humanos ao fato de a maioria dessas instituições ser gerida por religiosos, e não por profissionais de Saúde. Na avaliação dele, gera preocupação que entidades que se proponham a oferecer reabilitação a viciados em drogas reproduzam suas crenças religiosas no tratamento médico. Ele observa que, em muitas dessas entidades, não há nem profissionais de Saúde nem psicólogos.
— Esses profissionais, de um modo geral, não dizem claramente o que fazem, então é difícil identificar casos em que a identidade de gênero é violada. Mas a gente sabe que eles existem. E existem com muito mais presença e força que um relatório é capaz de identificar — afirmou.
Segundo resolução do CFP, é proibido oferecer tratamento ou cura para a homossexualidade. Em face das denúncias, a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT) informou que enviou o conteúdo do relatório ao Ministério Público Federal, para que sejam abertas investigações contra as clínicas e comunidades.
Organizações negam que convertam homossexuais
Procuradas pelo GLOBO, clínicas de reabilitação e comunidades terapêuticas, citadas no relatório do Conselho Federal de Psicologia, negaram que oferecem tratamento de conversão da sexualidade a internos homossexuais. Em nota, o presidente da Fazenda Esperança, em Sergipe, Maurício Bovo, argumentou que sempre cumpriu com o determinado na legislação e afirmou que “não há nenhum tipo de segregação e preconceito com o homossexual que procura a entidade, o qual é bem acolhido como todas as pessoas”. “A proposta de mudança de vida não que dizer que a pessoa tenha que deixar de ser homossexual. Ela é livre em sua escolha”, afirmou.
A presidente da Associação Beneficente Metamorfose, em Goiás, Sônia Maria Borges, negou que a clínica ofereça conversão a homossexuais e alega que a mensagem da entidade de recuperação a dependentes químicos foi mal interpretada pelo Conselho Federal de Psicologia.
— Nós colocamos a palavra de Jesus: “Se, pois, o Filho vos libertar, verdadeiramente sereis livres”. Para nós, a conotação é essa. Na minha clínica, a palavra “livre” se refere a livre das drogas, da depressão, do que eles querem ser livres. Eu não disse do homossexualismo, eu disse do que eles quiserem ser livres. Se é do homossexualismo, que seja do homossexualismo. A gente prega a liberdade de ser feliz — disse.
A vice-presidente do Esquadrão da Vida, Magali Rodrigues, disse que os indícios presentes no relatório são mentirosos, ressaltou que não há discriminação na entidade e afirmou que a clínica aceita dependentes de álcool e drogas que queiram se recuperar apenas do vício. A presidente do Lar Cristão Ala Feminina, Helen Cristine, não respondeu ao pedido de entrevista.
O procurador regional do Direito do Cidadão em São Paulo, Jefferson Aparecido Dias, explicou que, nos casos de violação de direitos humanos, cabe o ingresso pelo Ministério Público de pedido judicial que pode resultar no fechamento da clínica. Ele lembrou que, em São Paulo, o Ministério Público conseguiu lacrar entidades para tratamento de dependentes químicos que foram alvo de denúncias de preconceito contra homossexuais.
— Normalmente, as entidades que recebem as denúncias não deixam de cumprir apenas uma legislação. Elas não só discriminam, mas também acabam violando leis que envolvem o tratamento que se esperaria dessas instituições, o que pode também resultar no fechamento — disse.
Fonte: O Globo via Clipping Seleção de Notícias, 21/07/03
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