Beija-lhe as partes todas e no seu regaço, banhado de prazer, mergulha os dedos cúpidos, a língua voraz. |
A última visita despediu-se já noite alta, agradecendo uma vez mais o convite para o sarau. Ao retornar, a dona da casa passou pela sala recolhendo os derradeiros copos, os cinzeiros cheios, indagando aos gatos quem a haveria de ajudar. Na cozinha, empilhados os pratos à espera da água e do sabão.
Toca a campainha. Uma, duas vezes com urgência.
Quem seria? Se pergunta a dona. Uma esquecida decerto, que de tudo se esquecem em sua casa. Como aquele aparelho de dentes que a empregada, bissexta no arrastar dos móveis, achou sob o sofá. De quem seria?
“Já vai”, diz a dona da casa, falando de dentro. Entre o tocar a campainha e o abrir o portão vai toda a distância de um quintal comprido, alumiado por tochas e transbordante de plantas. “Já vai”, avisa a dona. Não com um grito, mas num sussurro escancarado, porque é noite alta e a vizinhança dorme. Lá no céu daquela sexta-feira, 13 nos dias do mês e segunda nas feiras de sexta, impera alta e cheia a lua.
Aberto o portão, atrás da folhagem densa e vasta que encobre a entrada, uma figura jovem, elegante e muito branca se apresenta.
“Vim buscar meu aparelho de dente”, demanda sem aspereza, numa voz que é mais um pedido de doce exigência.
A dona da casa que aqui dispensa o nome, porque é sabidamente a dona, por termo passado e lavrado em cartório, olha incrédula a figura atraente que tem por diante. Não se recorda de sarau que a jovem houvesse frequentado, poema que houvesse lido, música que tocasse ou palmas que batesse emocionada.
“Meu aparelho de dente”, insta a jovem de olhos súplices postos na dona da casa, que vencida pelo rogo, se esquece de inquirir o básico, qual seja: quem seja que lhe bate à porta. Começa por lhe abrir o portão, depois leva-la à porta, introduz à sala, encaminha pelo corredor e com ela adentra o quarto onde jaz sobre o criado mudo calado e aguardante o aparelho de dente.
A jovem se lança sobre o objeto com a sofreguidão de quem há muito o procura.
“Preciso dele para que meus dentes fiquem direitos” confessa num sorriso tímido a mostrar magnífica a dentadura sem falhas, os dentes, os de cima e os de baixo, alvos, circundados pelos caninos, domados dentro da branca fileira.
Com cuidado a jovem envolve o aparelho num guardanapo que solícita lhe oferece a dona da casa. E guardado o objeto, à dona da casa volve sua atenção. Os olhos antes tímidos transmudam-se em sedução e brilho como se só agora pudessem notar a dona em cuja casa estava. E a anotar cada traço de sua tez, os olhos doces, a pele pálida, jamais tanto quanto a sua, as mãos pequenas, as covinhas graciosas no rosto.
Num gesto delicado, passa-lhe a mão pela face, desce-a pelo pescoço, acaricia-lhe a nuca, que essa dona de casa é especial, não somente por lhe entregar seu aparelho, mas por guardá-lo com apreço longe da poeira.
O gesto delicado, falou-se em delicado?, delicado fora, pois agora se reveste de um calor intenso que seduz imperioso a dona da casa, lhe inunda a fronte, umedece as mãos, desce por entre os seios, tropeça no umbigo e se instala fremente e pulsante entre as pernas. A dona da casa sente arder em si o desejo de que algo aconteça e em acontecendo se faça sempre e mais e fundo.
A jovem a toma nos braços, nos seus roça os lábios, beija-lhe os cabelos, suspira resignada junto ao pescoço, tenro e saboroso, por onde vê pulsar quente e desavisada uma veia. Freme o desejo de si e de seus dentes que um dia ainda hão de ser magníficos e contundentes, por obra e graça do aparelho.
Despe-lhe à dona da casa o suéter e com dedos vorazes e língua cúpida ganha seu colo, diverte-se em saborear os mamilos escuros e doces, tesos de querer mais. Com eles brinca os dedos, confere sua leveza e seu ardor e desce, desce sempre, gozando das delícias da forma, do veludo da pele, do latejar da carne, desnudando, retirando à dona da casa o pouco que lhe resta até restar à dona tão nua e ardente apenas o seu muito querer.
Beija-lhe as partes todas e no seu regaço, banhado de prazer, mergulha os dedos cúpidos, a língua voraz. E beija e mordisca, e lambe e abraça, arredonda nos lábios o que de mais caro há para a dona da casa que em tremores de gozo se abre por inteira. E geme e chora e pede sempre mais, até saciar-se num cansaço prazeroso.
E aí e então entra por uma fresta o primeiro raio de sol. O abraço caloroso se esvaece e se transforma abrupto num ruído de asas a bater-se contra a janela até achar um canto por onde fugir dos gatos que se aproximam ameaçadores. Mas a dona da casa nada vê, pois, saciada e quieta, dorme o sono de quem sabe cuidar dos objetos dos outros.
Stella C. Ferraz é autora dos romances lésbicos Preciso te ver, A Vilas das Meninas e Pássaro Rebelde, publicados pela ed. Brasiliense. Originalmente publicado no site Um Outro Olhar e 25/10/05.
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