Salete Maria |
Entrevista com Salete Maria, do blog Cordelirando, sobre seus cordéis inovadores que atacam a homofobia
UOO: Salete, primeiro fale um pouco de você: sua idade, etnia, sua profissão, formação, cidade onde vive, se é casada ou solteira, etc.
Salete Maria (SM): Sou Salete Maria, cordelista, brasileira. Moro em Juazeiro do Norte, Ceará, cidade considerada a Meca do Sertão em face da figura mítica do Padre Cícero Romão Batista. Nasci em São Paulo por força de um problema social muito sério: o desemprego que, agravado pela seca, assolou o nordeste do país e tangeu meus pais, assim como seus conterrâneos, para o sudeste em busca de “uma vida melhor”. Toda minha ascendência é nordestina. Sou bisneta de romeiros pernambucanos, neta de cearenses analfabetos e filha de resistentes sociais. Meu pai é um lavrador que em São Paulo virou pedreiro e minha mãe é uma camponesa que em São Paulo foi faxineira. Vim ao mundo em 1969, mais precisamente no dia 7 de março. Tenho cinco irmãos e uma filha. Sou advogada, professora universitária e militante de direitos humanos. Por conta da minha história de vida, desenvolvi a compreensão de que o direito se constrói nas lutas sociais, com muita peleja e poesia. Defendo o pluralismo jurídico e literário e coloco minha formação e minha arte a serviço das causas dos excluídos e marginalizados. Sou solteira e atualmente desenvolvo estudos sobre gênero e direito, em nível de doutorado, na Universidade Federal da Bahia, em Salvador. Escrevo contos, poemas e, sobretudo, cordéis.
Salete Maria (SM): Sou Salete Maria, cordelista, brasileira. Moro em Juazeiro do Norte, Ceará, cidade considerada a Meca do Sertão em face da figura mítica do Padre Cícero Romão Batista. Nasci em São Paulo por força de um problema social muito sério: o desemprego que, agravado pela seca, assolou o nordeste do país e tangeu meus pais, assim como seus conterrâneos, para o sudeste em busca de “uma vida melhor”. Toda minha ascendência é nordestina. Sou bisneta de romeiros pernambucanos, neta de cearenses analfabetos e filha de resistentes sociais. Meu pai é um lavrador que em São Paulo virou pedreiro e minha mãe é uma camponesa que em São Paulo foi faxineira. Vim ao mundo em 1969, mais precisamente no dia 7 de março. Tenho cinco irmãos e uma filha. Sou advogada, professora universitária e militante de direitos humanos. Por conta da minha história de vida, desenvolvi a compreensão de que o direito se constrói nas lutas sociais, com muita peleja e poesia. Defendo o pluralismo jurídico e literário e coloco minha formação e minha arte a serviço das causas dos excluídos e marginalizados. Sou solteira e atualmente desenvolvo estudos sobre gênero e direito, em nível de doutorado, na Universidade Federal da Bahia, em Salvador. Escrevo contos, poemas e, sobretudo, cordéis.
UOO: Fale um pouco sobre o cordel: sua origem, suas características, seus principais expoentes.
SM: Eu não conheço consenso acerca da origem da literatura de cordel. Muitos afirmam que é de origem européia. Todavia, já ouvi “vozes sábias” dizerem que esta literatura já existia desde a época dos povos conquistadores de origem greco-romana; havendo chegado, por volta do século XVI, a península ibérica, mais precisamente a Espanha e Portugal. Nestes lugares este tipo de literatura recebia o nome de “pliegos sueltos”, “folhas soltas” ou “volantes”. Aqui no Brasil o cordel chega com os colonizadores e se instala, primeiramente, na Bahia, em Salvador, e depois se expande para o resto do nordeste.
Muitos sustentam que a característica fundamental do cordel é o fato de ele ser uma espécie de poesia popular, impressa e divulgada em folhetos ilustrados com xilogravura. Todavia, já existem controvérsias sobre isto, uma vez que este “popular” é bastante discutível, sendo também possível a utilização de outras formas de ilustração, tais como desenhos e clichês grafados em zinco, por exemplo.
Dizem que o cordel ganhou este nome porque os folhetos eram expostos amarrados em cordões, estendidos em pequenas lojas de mercados populares ou até mesmo nas ruas, em Portugal. O custo do cordel, tal como foi e ainda é produzido, é bastante baixo, comparado com o custo de outras literaturas. Ademais, geralmente estes folhetos são vendidos pelos próprios autores. O cordel ainda goza de um certo prestígio em estados como Pernambuco, Ceará, Alagoas, Paraíba e Bahia. Dizem que tal sucesso é atribuído ao baixo preço e ao tom jocoso presente na narrativa da maioria dos trabalhos. Em geral, os temas tratam de fatos que vão desde a vida cotidiana até grandes fenômenos como secas, cangaço, religiosidade, heroísmo, milagres, festas, política, disputas, etc. Todavia, já existem cordelistas no Brasil discutindo e re-significando este tipo de literatura, inclusive propondo uma crítica ao cordel tradicional, como é o caso da Sociedade dos Cordelistas Mauditos, da qual eu faço parte.
Quanto ao modo de apresentação, ainda é possível se encontrar cordéis sendo acompanhados pela viola em recitais públicos, porém em menor quantidade.
Quanto ao modo de apresentação, ainda é possível se encontrar cordéis sendo acompanhados pela viola em recitais públicos, porém em menor quantidade.
Quanto aos ditos expoentes, pode se dizer que os livros e pesquisas sobre cordel, em consonância com outras formas de historiografia, confere maior visibilidade aos poetas homens, uma vez que a maioria dos entendidos e experts neste campo só destaca os grandes vates, dando a entender que não existem mulheres cordelistas no mundo do folheto. E isto também se reproduz na fala e na prática de muitos amantes do cordel ou até mesmo de respeitados e reconhecidos produtores deste gênero literário. Uma prova disto é o fato de que a Academia Brasileira de Literatura de Cordel, sediada no Rio de Janeiro registra entre os “imortais” ocupantes das 40 cadeiras, apenas seis mulheres, cuja produção, no meu entender, se apresenta num tom bastante favorável à manutenção deste status quo; valendo destacar que no estatuto desta Academia, apenas 25% de suas cadeiras estão reservadas a não-moradores da capital carioca, ou seja, não há apenas um desequilíbrio na representatividade feminina, há também uma exclusão de ordem geopolítica que impossibilita o ou a cordelista da margem de ser reconhecido pelo cânone.
Sobre os grandes nomes, se você perguntar a qualquer pesquisador ou mesmo cordelista “bem informado”, vão dizer que o poeta da literatura de cordel que fez mais sucesso até hoje foi Leandro Gomes de Barros (1865-1918), que deve ter escrito mais de mil folhetos.
Sobre os grandes nomes, se você perguntar a qualquer pesquisador ou mesmo cordelista “bem informado”, vão dizer que o poeta da literatura de cordel que fez mais sucesso até hoje foi Leandro Gomes de Barros (1865-1918), que deve ter escrito mais de mil folhetos.
No entanto, existem muitos poetas por este Brasil afora, mormente no nordeste do país, com excelentes produções, porém ainda sem oportunidade de apresentar seu trabalho.
UOO: O cordel é uma expressão artística tipicamente nordestina, mas também se encontram cordelistas em outras partes do Brasil. Quais seriam e quem são os artistas mais conhecidos.SM: No Brasil, realmente, o cordel tem sido mais produzido no nordeste, onde ele chegou primeiro, se instalou e encontrou um ambiente fértil para sua expansão e apreciação. Pernambuco, Paraíba e Ceará se destacam entre os estados onde sua presença é mais forte. No Ceará, a região do Cariri, onde eu moro, é um verdadeiro celeiro de produção de literatura de Cordel. É na cidade de Juazeiro onde ainda existe em pleno (porém difícil) funcionamento a Gráfica Lira Nordestina, grande patrimônio e rico legado da produção de cordel no país.
Por outro lado, e sobretudo por conta do êxodo, das diásporas às quais já me referi, o cordel segue sendo apreciado e confeccionado em outros cantos do país. Em estados como São Paulo, Rio de Janeiro e Minas é possível encontrar cordel em espaços e feiras de produtos nordestinos.
Como disse, são mais conhecidos os cordelistas homens, havendo sempre o destaque nas diversas obras sobre a temática para poetas como Leandro Gomes de Barros (1865-1918) e João Martins de Athayde (1880-1959), enquanto precursores. As obras em geral e a imprensa oficial têm dado destaque ainda, dentre tantos, aos seguintes nomes: o baiano Antonio Teodoro dos Santos (1916), o pernambucano Apolônio Alves dos Santos (1926); o cearense Arievaldo Viana Lima (1967); o paraibano Cícero Vieira da Silva (1936); o pernambucano Caetano Cosme da Silva (1927); o alagoano Enéias Tavares dos Santos (1932), o paraibano Francisco das Chagas Batista (1882); o pernambucano Francisco de Souza Campos (1926); o paraibano Francisco Firmino de Paula (1911); o paraibano Francisco Sales de Arêda (1916), o pernambucano Inácio Carioca (1932), o pernambucano Jota Barros (1935), o baiano João Damasceno Nobre (1910); o sergipano João Firmino Cabral (1940), o alagoano João Gomes de Sá; o cearense João Lucas Evangelista (1937); o paraibano João Melchiades Ferreira da Silva (1869); o paraibano Jose Camelo Resende, o pernambucano José João dos Santos, conhecido como mestre Azulão, o pernambucano Zé Pacheco, o pernambucano Manoel Monteiro, o baiano Minelvino Francisco Silva, o paraibano Silvino Pirauá, dentre outros. Eu, particularmente li e bebi muito nestas fontes e tenho muito apreço e devoção por Patativa do Assaré.
Todavia, já existem importantes estudos acadêmicos sobre a produção feminina na literatura de cordel, merecendo destaque a pesquisa da professora da Universidade Federal do Ceará, campus Cariri, Francisca Pereira dos Santos, (Fanka) que também é cordelista e tem trabalhos publicados sobre esta questão. Esta pesquisadora já cataloga mais de 30 mulheres produtoras, sendo que a maioria delas mora no nordeste do país. Em sua obra intitulada Romaria de Versos sobre mulheres cearenses autoras de cordel, ela destaca as poetisas Arlene Holanda, Mana, Josenir Lacerda, Maria Anilda, Maria do Rosário, Maria Ivonete, Maria Luciene, Maria Matilde, Maria Vânia, Bastinha e eu.
Com vistas também a provocar um debate sobre este problema há um cordel meu intitulado MULHER TAMBÉM FAZ CORDEL, que pode ser acessado em nosso blog. Neste cordel contamos a história do início da produção escrita de cordel pelas mulheres no Brasil, mostrando que a primeira a publicar um folheto teve que assinar com pseudônimo masculino, nas primeiras décadas do século passado. Todavia, como as maioria das mulheres fora condenada ao analfabetismo por muito tempo, isto não quer dizer que elas não faziam poesia. Minha avó mesmo, como já disse, sempre recitou e sempre criou, porém no campo da oralidade, já que este era o seu único e possível lugar de manifestação.
Existem muitas mulheres escrevendo cordel hoje no Brasil, dentre as quais eu me incluo e sou apresentada como um diferencial, mas não apenas por ser uma mulher escrevendo cordel, mas por ser uma mulher que escreve cordel sobre temáticas femininas, inclusive visibilizando, por este veículo, as mulheres lésbicas.
UOO: Agora nos fale um pouco sobre como se envolveu com cordel.
SM: Bom, eu sou neta de D. Maria José e sobrinha de Zé Alexandre. Ela poeta, cordelista, cega e analfabeta que “dizia” sua poesia e a de outras pessoas que ela escutou durante a toda a vida. Faleceu aos noventa anos, em 2003, sem nunca ter aprendido a ler ou escrever. Foi a primeira mulher a fazer versos que eu conheci. Escutei muito ela recitar. Li muitos cordéis pra ela também.
Meu tio Zé Alexandre mora também em Juazeiro do Norte, é um grande poeta, faz rimas primorosas e muito me influenciou com seus rabiscos e sua sensibilidade poética, já que ele quase não publica. Sempre li para meus parentes da zona rural que, em regra, ou não sabiam ler ou liam muito pouco, e tinham na literatura de cordel uma atividade de deleite ou mesmo um veículo de notícias. Comecei lendo, depois fui produzindo e hoje tenho vários títulos publicados e dois deles premiados.
UOO: Quantos cordéis você já compôs e onde os divulga, além de por seu blog Cordelirando?
SM: Tenho mais de quarenta cordéis publicados. Mas tenho muito mais compostos. Nem sempre posso publicar. Nem sempre publico logo que escrevo. Costumo divulgar nos eventos, faço doação para pesquisadores, admiradores e outros cordelistas. Nunca escrevi pensando que as pessoas pudessem apreciar o meu texto porque é um texto muitas vezes polêmico, carregado de paixão e luta, muito intertextual. Através do meu cordel eu dialogo com várias outras literaturas e formas de arte. Escrevo também cordel pensando na música, na cantoria e no teatro, enfim. Tenho o blog intitulado Cordelirando onde publico desde 2007. É um espaço de divulgação.
Mas eu gosto muito também do cordel impresso, da capa, do formato, enfim, da estética real. Recentemente uma grande cantora paraibana, chamada Socorro Lira, resolveu, estimulada por duas grandes amigas em comum, musicar meu cordel intitulado MARIA DE ARAÚJO E SEU LUGAR NA HISTÓRIA (ou a Beata Beat Cult). Este meu cordel trata da história de uma beata lá de Juazeiro do Norte que ao receber a hóstia em comunhão protagonizou um “milagre” que fez com que o Padre Cícero se tornasse o grande taumaturgo do nordeste.
O fato é que a beata fora secundarizada na história, e eu busco narrar o acontecido, num texto teatral irônico, provocativo, dramático, que mistura bendito e embolada, dando visibilidade a esta mulher que era e ainda é um ser marginal na grande história da minha terra. Pois bem. Socorro Lira, ao musicar este cordel, sob a direção da baiana Gal Meirelles, gravou um DVD que vai ser lançado até o final deste ano, junto com uma coletânea de 8 cordéis meus. O projeto recebe o título de dois outros cordéis meus: CORDELIRANDO e MULHER TAMBÉM FAZ CORDEL.
Além disto, atores juazeirenses, tais como Joaquina e André de Andrade têm feito leituras dramáticas do meu trabalho, com apresentação pública em projetos patrocinados pelo Banco do Nordeste do Brasil-BNB. A poetisa potiguar Dath Haak também recitou e disponibilizou na internet três dos meus cordéis, dentre eles Lesbecause e do Direito de ser gay. Eu mesma, apesar da timidez, sempre recito em rodas de amigos e às vezes antes de ministrar algumas palestras.
UOO: Qual o tema principal de seus cordéis? E quanto eles se diferenciam dos cordéis tradicionais?
SM: Veja, no ano 2000 foi criada a Sociedade dos Cordelistas Mauditos, em Juazeiro do Norte. Esta turma é composta por jovens poetas de grande entusiasmo. Integrei esta Sociedade desde o seu nascedouro. Mas antes disto, desde 1996, eu já publicava. Escrevo há bastante tempo. Tenho cordéis sobre variados temas. Na sua totalidade são sobre questões marginais e periféricas. A maioria sobre mulheres, relações de gênero, homossexualidade, cidadania e afins. Também já falei de assédio moral, velhice, analfabetismo, violência, saúde, política, etc. Mas a temática preferencial é a das mulheres e homossexuais.
Antes de ser da Sociedade, eu já falava das temáticas que os cordelistas mauditos abordam. Pensamos que a diferença entre nós e os ditos tradicionais se dá tanto na forma quanto no conteúdo. Na forma, inovamos com a capa, que além da xilogravura usamos colagens, desenho, foto, etc. E às vezes ilustramos até as folhas internas do cordel. No conteúdo, procuramos abordar de modo crítico, denunciativo, propositivo e emancipatório questões que os cordéis tradicionais tratam no sentido de manter o status quo. Demonstramos a questão da violência contra a mulher, do discurso homofóbico, machista, racista, sexista presente em muitos dos clássicos da literatura de cordel.
Atualmente nossa ‘sociedade’ tá meio dispersa porque os cordelistas precisam trabalhar para sobreviver, mas mesmo assim eu gosto de destacar o valor dos meus colegas. Poetas como Hélio Ferraz, Fanka, Soneca, Batata, Orivaldo, Nicodemos, dentre outros, são os poetas ditos mauditos do Cariri. E são muito bons. Logicamente que de tão mauditos têm divergências entre si, mas isto faz parte da proposta. Eu tenho sido a que mais tem produzido e a que antes da sociedade já tinha este espírito de poesia social e crítica. Fizemos um manifesto que dizia mais ou menos assim: A nossa comunicação se dá através da poesia de cordel, traço da nossa identidade nordestina. Odiamos tecnicistas sem sentimentos literários. Somos contra o lugar comum da globalização que cria signos massificantes e uniformiza o comportamento estético. Nosso movimento movimento pretende, sob uma ótica intertextual, utilizando vários códigos estéticos, redimensionar a literatura de cordel para um campo onde todas as linguagens sejam possíveis. Não somos nem erudito nem popular, somos linguagens. Entramos na obra porque ela está aberta e é plural. Somos poeta e guerreiros do amanhã. A poesia escreverá, enfim, a verdadeira história. Viva Patativa do Assaré e Oswald de Andrade.
De 2000 para cá eu andei revendo algumas questões. Na verdade, não sou exatamente eu ou os mauditos que nos apresentamos como os “diferentes”, são os “iguais” que nos acusaram de não saber fazer cordel, de trair o cordel tradicional. Muitos sustentam que nós não fazemos literatura de cordel porque nós estamos quebrando tabus e questionando dogmas do cordel. Mas isto já é tão previsível que meu cordel tem sido acusado de muitas coisas. Eu mesma já sofri ameaça até de morte por causa dos cordéis, já fui ameaçada de processo. Mas eu vou e faço outro cordel ou então parafraseio o poeta Pessoa e indago: viver é preciso? Viver para mim só é possível e só é necessário fazendo poesia, vivendo poesia, dizendo poesia. Enfim, cordelirando....
UOO: Você já compôs cordéis específicos sobre a questão homossexual e lésbica. Quais são?
SM: Compus vários cordéis ditos gays, sim. Falo sobre o que me mobiliza, sobre o que me diz respeito. Tudo que é humano nos diz respeito, disse o filósofo. Os homossexuais, homens e mulheres, dizem que sem eles os direitos não são humanos e eu poetizo: Sem os homossexuais não existe humanidade, não existe poesia. Então, eu escrevo sobre isto, sim.
Meu primeiro cordel ostensivamente gay eu comecei a rabiscar sozinha e aí eu resolvi convidar uma cordelista da sociedade dos mauditos, a Fanka, para produzir comigo, em parceria. O nome deste cordel é A HISTORIA DE JOCA E JUAREZ, que versa sobre um romance que se passou em 1913, na cidade de Juazeiro. Trata-se de um amor proibido entre um zabumbeiro e um jardineiro do Padre Cícero. Procuramos retratar o discurso da igreja, a hipocrisia social e intercalamos personagens fictícias com figuras reais. É um cordel romanceado publicado em 2001.
Mas existem muitos outros que escrevi sozinha, tais como O GRITO DOS MAU ENTENDIDOS que versa sobre uma assembléia de homossexuais, onde eu brinco com personagens do mundo artístico e falo de um evento onde se discute a discriminação e a violência contra gays, tudo intertextualizando com músicas que tem um sentido gay, etc. Tem outro chamado O QUE É SER MULHER? que não é unicamente gay, mas provoca uma discussão sobre as sexualidades e há uma passagem em que eu pergunto se um homem não pode ser mulher ou se uma mulher não pode amar outra mulher e tal. Tem um outro intitulado DIA DO ORGULHO GAY, no qual eu narro a origem da data do orgulho. Tem um que se chama DO DIREITO DE SER GAY (ou condenando a homofobia) que é próprio para o teatro e que foi recitado pela poetisa Dath Haak.
Tem um que se chama LESBECAUSE onde eu faço uma ode às lesbianas. Tem o que se chama MULHERES FAZEM, onde eu brinco com possibilidades... E, por último, MARIA, HELENA que narra um romance entre duas mulheres do sertão, devotas, simples e lésbicas. Todos estes cordéis podem ser acessados no blog ou então consultados no acervo da cordelteca do SESC de Juazeiro do Norte.
UOO: Os cordéis têm uma função didática, entre outras. Como tem sido a reação do público hétero aos cordéis de temática homo?
SM: Com efeito, o cordel tem uma função didática, educativa, sim. Para se ter uma idéia, muitas pessoas no Ceará foram alfabetizadas a partir do cordel. A literatura de cordel foi a minha primeira literatura. Todavia, muitos textos de cordel também podem trazer grandes problemas para a formação, para a educação das pessoas. Li, na infância, um cordel chamado A Peleja do Cego Aderaldo com Zé Pretinho. Este cordel reproduz muito preconceito, é baseado em estereótipos de cego imprestável, inútil e de negro sujo, incapaz...
Às vezes me torno antipática denunciando estes “clássicos” que muitas vezes são enaltecidos até mesmo por acadêmicos, mas que na verdade são textos extremamente nocivos à idéia de respeito às diferenças, etc. Tenho recebido muitos elogios e muitas críticas também não apenas pelos cordéis de temática homossexual. Mas também tenho recebido prêmios e tenho sido alvo de muito interesse por parte de pessoas que acham que faço um trabalho legal. Na verdade a minha literatura, ou o meu “cordelírio”, tem cumprido uma função política muito forte, assumida e declarada.
Eu realmente gosto e me alimento deste tipo de arte que, infelizmente ainda é bastante marginal, secundária, periférica, menor e desimportante nos círculos e circuitos literários. Por meio dela, eu cuido de questões também consideradas ácidas, inconvenientes, incômodas, etc. Porém, alguns pesquisadores no Brasil já estão investigando academicamente, em nível de especialização, mestrado e doutorado o meu trabalho. Ganhei dois prêmios nacionais de literatura de cordel que me foram concedidos pela Fundação Cultural do Estado da Bahia-FUNCEB nos anos de 2005 e 2006, respectivamente. Em Juazeiro, cidade onde moro, os gays recitam meus cordéis antes de abrir palestras, debates, etc. Há artistas dramatizando meus textos, inclusive o cordel DO DIREITO DE SER GAY, que é um monólogo num tribunal do júri.
Muitos dos meus textos são feitos para o teatro. Então, a temática homo tem chamado a atenção do público, sobretudo pelo fato de vir a partir da literatura de cordel. A Revista Cult, de 2003, salvo engano, traz um dossiê sobre literatura gay, onde se indaga se é uma bandeira política ou um gênero literário. O professor Gilmar de Carvalho, grande conhecedor da literatura de cordel, tem um texto nesta revista onde ele fala da nossa produção, cita inclusive meu trabalho. Então, em geral, tem sido boa, algumas pessoas estão considerando a nossa produção de cordel como um todo e em especial os de temática gay, lésbica, enfim, homossexual.
UOO: Além de elaborar cordéis, você desenvolve outras atividades em prol da cidadania LGBT?
SM: Veja, sou professora do departamento de Direito da Universidade Regional do Cariri-URCA, fiz opção por ser uma advogada popular, com formação em direitos humanos, estudos gênero, feminismos, mulheres, sexualidades. Concluí em 2002, uma dissertação de mestrado intitulada O Princípio da Igualdade Jurídica e a Discriminação contra Homossexuais: ações e omissões dos poderes públicos no Brasil, pela Universidade Federal do Ceará.
Elaborei os estatutos de duas ONGs Gays no Cariri cearense. Dei assessoria jurídica gratuita a estas entidades, ajudando, portanto, a construção da cidadania LGBT numa região onde há um forte componente de machismo e homofobia, mormente em face da tradição religiosa. Realizei inúmeras palestras, participei de muitos debates, escrevi e ainda escrevo textos sobre o assunto, publiquei na Revista Artemis, etc. Procuro dar minha contribuição.
Estive em Cuba dialogando com mulheres lésbicas e heterossexuais sobre gênero, direito, etc. Sou também um ser cuja sexualidade está em permanente construção. Portanto, não dou uma contribuição desinteressada. Eu, de alguma forma, também sou gay, minhas idéias, meu modo de ser e estar no mundo é marginal, é questionador, é periférico, é gay, por excelência.
UOO: Muita gente vem reclamando hoje em dia da burocratização do Movimento LGBT, apontando seu distanciamento da população LGBT e propondo atividades artísticas como forma de fazer política por uma via menos chata. O que você acha disso?
SM: Eu penso que é por aí. A aproximação e até a própria (con)fusão do movimento LGBT com os partidos e com o poder institucionalizado muitas vezes engessa, sufoca, imobiliza. A realidade tem demonstrado isto. Não sou uma pessoa anti-partido, ao contrário, já fui até candidata ao governo do meu Estado nas eleições de 2006. Aliás, a única a defender publicamente a criminalização da homofobia e a união entre pares do mesmo sexo naquele habitat. Estou, como muita gente neste país, com um pé atrás com esta política que vivenciamos, que nos fora vendida com um discurso e que se nos apresenta de modo torto, obtuso, enfim.
Tampouco faço um discurso da arte pela arte. Penso que política e poesia é reflexão e ação constante. A discussão de tudo o que interessa aos seres vivos deve ocupar estes espaços. O discurso pela veia artística é um discurso prazeroso. Costumo dizer que faço uma poética-político-exótico-erótica. Não faço nada sem o prazer de fazer e de viver. Não suporto o amordaçamento da criatividade em nome de uma ideologia, de um edital, de uma campanha, de uma candidatura, de uma burocracia que visa domesticar e roubar a radicalidade da luta pelo respeito ao ser humano. Penso que podemos avançar dialogando com todos e todas que desejam um mundo melhor sem nos algemar, sem nos impedir de grita contra toda e qualquer espécie de opressão, institucionalizada ou não.
UOO: Por fim, deixe uma mensagem para nossas leitoras.
SM: Quero dizer que para mim foi um prazer falar para vocês. Quero seguir dialogando. Tenho um texto que diz que Um outro direito é possível. Tento construir um outro olhar sobre o mundo jurídico, e também sobre a arte em geral, sobre a literatura e em especial sobre a literatura de cordel. Ou seja, partilho com vocês da idéia de que é possível lançar UM OUTRO OLHAR sobre tudo, mormente sobre as sexualidades. Então, me encho de entusiasmo com o contato com gente que quer ser feliz, que quer amar e que pensa que a arte pode ser um modo de se publicizar isto. Obrigada por me ajudarem a seguir cordelirando sempre e mais. Um abraço afetuoso para todas.
Publicado originalmente no site Um Outro Olhar em 24/04/09
Parabéns pela desenvoltura da sua entrevista. Você é merecedora de todo respeito, pois sua postura enobrece o ser humano. Vá em frente, querida.Um beijo.
ResponderExcluir