Da camisa xadrez da butch... |
Autora: Stella Ferraz
Uma das razões pela qual Joana D’Arc foi para a fogueira é porque insistia em usar roupas masculinas. Embora houvesse também razões de ordem política, os trajes que a jovem francesa usava escandalizavam e, pior, estavam absolutamente fora das normas prescritas para as mulheres da época. Se o hábito não faz o monge, com certeza lhe dá a aparência de um. Há um dito na comunidade árabe que afirma que eles recebem as pessoas como elas se apresentam, mas se despedem de acordo como elas são.
Uma das razões pela qual Joana D’Arc foi para a fogueira é porque insistia em usar roupas masculinas. Embora houvesse também razões de ordem política, os trajes que a jovem francesa usava escandalizavam e, pior, estavam absolutamente fora das normas prescritas para as mulheres da época. Se o hábito não faz o monge, com certeza lhe dá a aparência de um. Há um dito na comunidade árabe que afirma que eles recebem as pessoas como elas se apresentam, mas se despedem de acordo como elas são.
A verdade é que o vestuário tem muito a ver com a mensagem que queremos dar de nós mesmas. Até recentemente o traje discriminava as pessoas por idade (crianças, jovens, adultos e idosos) e classe social (realeza, nobreza, burguesia, povo): a menina devia vestir-se de uma determinada forma, a mulher casada de outra e a viúva ainda de um terceiro modo. O mesmo com os rapazes; usavam calças curtas em pequenos, e o uso de calças compridas, marcava para eles a passagem a um estágio mais maduro de vida.
No decorrer do tempo, a roupa tem sido um sinal exterior de classe social e status na sociedade. Os escravos brasileiros eram obrigados a usar roupas brancas, e não lhes permitiam outra cor senão essa, para dificultar-lhes a fuga. Basta conferir as célebres pinturas de Debret e Rugendas com nossos negros, todos devidamente uniformizados em branco. Da mesma forma os presos usavam roupas listradas, para discriminá-los e tornar-lhes complicada a evasão do presídio.
Na Idade Média, certos tipos de tecidos e cores eram privilégios da nobreza. A burguesia também se distinguia das demais classes por roupas que lhes eram próprias e não se confundiam com as da realeza. Em nosso passado recente, a palavra da ordem da esquerda era o uso da roupa o mais próxima possível do padrão operário, num esforço para identificar-se e vestir seus ideais, enquanto que a pequena burguesia corre sempre atrás das etiquetas e grifes para aparentar um status e um poder aquisitivo que está longe de ter.
Este final de século e de milênio marca a transição entre as imposições da veste e a liberação dessas imposições. Para essa virada, houve uma mulher que desempenhou um papel preponderante: Coco Chanel, que desenhou trajes práticos para as mulheres e inventou o prêt-à-porter, o pronto para vestir, que dispensava a costureira particular, era produzido em série e muito mais barato. A partir dela, a moda passou a ser algo ao alcance do proletariado e da pequena burguesia.
Hoje é comum vermos mulheres de meia idade em trajes de juventude sem com isso criar escândalo. Já não se impõe uma veste que discrimine ou que privilegie. Cadeias de lojas como C&A e Marisa oferecerem modelos da moda a custo popular. Não somos mais obrigadas a nos vestir dentro de um determinado modelo. Hoje, mais do que nunca, quem dita a moda e a forma de se vestir somos nós mesmas.
Já podemos vestir o que sentimos que somos. Não há mais imposições externas, salvo, claro, uns poucos, por exemplo, quando você é advogada e deve ir ao Fórum. Ali, você em que usar uma saia, quer queira quer não.
O importante é que cada uma pode vestir o que é. Ou o que sente que é. Aí entra a tipologia: as que fazem o gênero butch ou caminhoneira, porque se sentem mais masculinas e querem ser vistas e compreendidas desse modo, e outras que se entendem por chics e já ganharam o preconceituoso apelido de lesbian chic.
.... às lesbian chics |
Meu primeiro romance GLS, Preciso Te Ver, foi considerado por muita gente um cenário de lesbian chics. As personagens principais usavam lenços Hermes (que nem a própria autora pode comprar e modelitos Chanel. Não que só houvesse lesbian chics na estória, havia jornalistas que usavam camisetas com slogans e veterinárias de botina. Mas o que marcou foram as heroínas, que andavam mesmo com todos os signos de poder aquisitivo. Nesse romance eu me guiei pela máxima de Joãozinho Trinta: pobre gosta de luxo; intelectual é que gosta de pobreza.
Vestida para ser a gente mesma
Em meu segundo romance, A vila das meninas, absorvi as críticas, deixei o conselho do Carnavalesco de lado, e situei a cena num ambiente em que as pessoas pegavam o ônibus, usavam camiseta Hering e comiam pastel. Enfim, as personagens tinham um estilo de vida inclusive ao alcance de sua autora. A roupa ajudou a situar quem eram as personagens.
E aí chegamos ao que interessa: lesbian chic ou butch, ou, simplesmente, mulheres que amam mulheres e amam se vestir cada qual de seu jeito, o importante é que nos conheçamos para saber o que melhor nos cai bem, o que melhor nos favorece dentro de um estilo nosso, que faz a nossa cabeça.
O autoconhecimento vai nos ajudar a selecionar o que queremos vestir. Mesmo aquelas que parecem não ligar para roupa e para moda, muitas vezes, na verdade, estão sinalizando: eu me visto assim porque não me preocupa a roupa, mas o conteúdo. Pode estar sinalizando sem querer, no entanto, que é uma pessoa que cabe no ditado: quem se enjeita se rejeita... E dar a ideia de que se não é capaz de cuidar de si, muito menos dos outros e de uma namorada.
Outras que capricham demais, podem estar passando a sensação de vácuo, vazio interior. O que pode resultar num primeiro movimento de rejeição, da mesma forma como se dá com as desmazeladas. Muitas vezes nos sentimos muitas, várias em uma. Pelo menos é como eu me sinto: num dia, executiva, no outro butch, no seguinte chic ou feminina. E acabo compondo um visual para cada momento: hoje é jeans, amanhã uma calça com pregas, depois de amanhã um vestido e salto alto. Mas em todas essas variações há uma constância que sou eu e meu estilo.
Sejamos uma ou várias, o importante é vestirmos o que realmente somos. Joana D’Arc foi condenada por vestir-se de homem e nós seremos se nos vestirmos de outra coisa que não nós mesmas.
Stella C. Ferraz é autora dos romances lésbicos Preciso te Ver e A Vila das Meninas, publicados pela ed. Brasiliense. Artigo originalmente produzido para a Revista Um Outro Olhar n. 34
Adoro os textos da Stella, uma mulher de bom senso!
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