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terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Rose Mancini: políticas tão exclusivas e inéditas quanto são as lésbicas. 

O Grupo Lésbico-Feminista (LF) foi o primeiro grupo de ativismo lesbiano do Brasil, criado, por sua vez, dentro do primeiro grupo homossexual brasileiro (1978-1983), chamado grupo SOMOS de Afirmação Homossexual. Em dezembro de 2010, entrevistamos uma das integrantes do LF, Rose Mancini, sobre suas memórias daquele período. Segue abaixo a apresentação de Rose e sua entrevista. 

Rose Mancini, 57 anos (na foto ao lado), nasceu em São Paulo, mas vive na Europa, para onde se mudou em 1986. Mora hoje em Milão, na Itália, com Sandra, sua companheira há quase seis anos, na serenidade de uma boa relação, como diz.

Eclética, trabalhou como enfermeira no Butantã (na USP), na Santa Casa de Misericórdia e no Hospital 9 de Julho, trabalho com que se manteve e à sua vida de artista. Estudou desenho e pintura com Harry Elsas e teatro com Miriam Muniz, e viveu no Embu (cidade de São Paulo), onde teve uma galeria. Fez varias exposições individuais e coletivas de pinturas em São Paulo e na Europa. Quanto ao ativismo social, diz que não acredita mais em política-partidária, mas ainda crê nas lésbicas.

Rose fez parte também, quando vivia em São Paulo, do já mitológico Grupo Lésbico-Feminista (LF), o primeiro grupo de lésbicas organizadas do Brasil, que surgiu em maio de 1979 e durou até meados de 1981. 

Na entrevista abaixo, ela nos fala um pouco de sua experiência como ativista lésbica no Brasil e na Itália e de sua visão do ativismo LGBT em geral. 
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UOO – Rose, você participou, há 30 anos, do primeiro grupo lésbico brasileiro, o grupo lésbico-feminista (1979-1981), mais conhecido pela sigla LF. Vamos então resgatar um pouco de sua trajetória  antes e durante o LF. 
Rose Mancini (RM) - Antes do Somos e do LF, no início dos anos 70, já formara um grupo, em São Paulo, com outras mulheres “como eu”, um grupo de amigas, de socorro, de “renegadas”, de “entendidas”, que queria viver a vida, o teatro, a arte, as discussões, as brigas, as separações, sem o drama lésbico. Era o tempo do amor livre, e tentávamos exprimir a afetividade erótica até o fim do amor ou da paixão. Todas nós trabalhávamos, éramos mulheres economicamente independentes do pai, situação ainda incomum para a época. Mas tínhamos, por outro lado, a sensação de ser erradas, anormais ou invertidas, crescidas na negação do feminino e da lesbianidade, odiando a nós mesmas. Como antídoto para esses sentimentos, buscávamos esvaziar o significado negativo das palavras que nos rotulavam, mudando a nossa língua, nos inventando. Líamos alguns textos feministas, usávamos técnicas teatrais, tínhamos uma espiritualidade sem religião. Éramos como uma rede de repúblicas só de mulheres “entendidas”. Não tínhamos nenhuma liderança, mas involuntariamente formávamos uma elite. 

Estávamos nesse ponto quando uma de nós chegou com a notícia de que um grupo iria se reunir para discutir sobre a condição dos homossexuais (na época a denominação englobava também as lésbicas).  A maior parte desse grupo era composta de homens. A maioria da república de entendidas não aceitou participar do que viria a ser o Somos, mas eu escolhi frequentar o grupo, apesar de não ser habituada à dialética masculina. Existia como que uma obrigação de masculinizar-se politicamente para existir lá dentro, além de ter que seguir a relativa democracia da maioria masculina. O Grupo Somos foi politicamente importante, mas não propunha muito de novo na modalidade e na gestão do espaço das lésbicas. Como no Somos não tínhamos um espaço para a discussão das nossas prioridades, nos separamos formando o LF. A coisa mais importante, para mim, que o Somos trouxe foi fazer o meu “ser lésbico” virar político. 

UOO – Quais os eventos de que participou, na época do LF, que considera mais marcantes?
RM - Foi o caráter público do LF o aspecto mais importante daquele período. Participar nas comissões, nas discussões de preparação de convenções, congressos, viajar pelo Brasil fazendo política lésbica e construindo um sujeito social. Íamos em grupo nas universidades (de psicologia, medicina, direito, etc.) para falar do fato de não ser heterossexual. Íamos panfletar nos bares e boates e dizer que ser mulher era lindo, dizer que mulher com mulher não dava jacaré, mas muito amor. 

Em nível de conquista de visibilidade, outro fato que me marcou muito foi quando Marisa Nunes, uma integrante e amiga do LF, foi vítima de violência sexual e decidimos acompanhá-la, ao programa do Silvio Santos, para protestar contra o estupro de que foi vítima. Também marcante foi a passeata contra o delegado Wilson Richetti (junho/1980) que fazia arrastões nos bares gays, lésbicos, prendia prostitutas e travestis (Rose aparece no círculo mais claro).

UOO – Passados tantos anos, qual sua avaliação pessoal e política do ativismo do Grupo Lésbico-Feminista?
RM - O LF, com todas as dificuldades, conseguiu viver e sobreviver apesar dos partidos da esquerda patriarcal. Apesar dos pesares e da ditadura. Tímida e corajosamente arrebentou cadeados de algumas pesadas portas milenares, permitindo um grande respiro e a entrevisão de espaços novos. Teve que lutar muito para encontrar uma definição e um perfil lésbico, sem conseguir plenamente, pois a componente política “feminista” venceu, como sempre e como ainda hoje acontece nos grupos. Prevaleceu porque favorece os subterfúgios da cultura masculina e a misoginia generalizada. Porque a  lesbianidade é uma ameaça ao sistema binário patriarcal.

UOO – Faz tempo que reside em Milão? Como foi parar aí?
RM - Vim para a Europa, em janeiro de 1986, trabalhar como artista. Morei primeiro em Barcelona e depois em Milão, onde ainda estou há 24 anos. Vim atrás de um sonho, para uma realidade bem longe da nossa. Entrei na Europa como se entra em uma dimensão já vista e superada. É muito difícil enfrentar realidades baseadas em pequenos números, pequenos contatos, pequenas distâncias. No velho mundo, a tradição, a descendência e o quase imobilismo constituem e formam o terreno onde todos caminham e se nutrem. A História passa várias vezes no mesmo lugar, produzindo mais ou menos os mesmos efeitos sem provocar fraturas consideráveis. 

UOO – No que trabalha? Exerce algum tipo de ativismo na Itália?
RM - Atuo profissionalmente como fisioterapeuta desde que cheguei. E continuo produzindo artisticamente: escrevo contos, histórias, poesias, ensaios. Faço vídeos. Pinto quadros. E tento manter o meu equilíbrio no mundo não comendo animais e não fumando. 
Participei de alguns grupos lésbicos por aqui desde que cheguei e formei outros. Com algumas amigas formamos o grupo “ Tempestade Hormonal”. Depois o “Grupo Delas”. Depois o “Elas”. Foram se acabando porque tinha sempre alguém com mania de protagonismo e liderança que contaminava o trabalho das outras. Após todas essas tentativas, entrei em um grupo sem nome e que depois passou a ser chamado de “Subjetividade Lésbica”. Por fim, criei o “Grupo LESSESSU” – exclusivamente sobre a afetividade erótica lésbica, uma oficina permanente, com um trabalho surpreendente, mas onde encontrei as maiores e piores dificuldades. 

Em geral, o ativismo lésbico no norte da Itália não é diferente do que acontece no Brasil. É a velha luta pelo poder das letrinhas da sopa GLBT, onde sempre tem quem queira comer mais do que a outra. Nos grupos, vigora mais ou menos a mesma linha de hierarquia dos partidos politicos. Vivem em posições muito distantes do amor pelas mulheres. 

UOO – Como é a vida social lésbica em Milão?
RM - Não existem muitas possibilidades de socialização ou de divertimento exclusivamente lésbico em Milão. A sociedade lésbica é composta de pequenos grupos de amigas que se encontram para jantar, ir ao cinema ou viajar. A moda dos últimos anos é o campeonato de buraco (o jogo de cartas brasileiro). A realidade das jovens lésbicas é quase somente de recreação: discoteca 2 ou 3 vezes por semana, futebol (poucas jogam). O ativismo lésbico das jovens é pequeno ou inexistente. 

UOO – Se conhece, como é o ativismo LGBT por aí e a situação das lésbicas dentro dele? Quais as reivindicações, quais as ações efetivas, quais as alianças, quais os conflitos?
RM - A Arci-Gay é a maior associação nacional GLBT, com sócias de carterinha em todo o território italiano, mas as que seguem as suas atividades não são muitas. Elas têm o telefone-amigo, um grupo de arte, onde conversam sobre as exposições que vão ver juntas, e um grupo de mobilização que discute basicamente qual será a participação da Associação nas várias manifestações políticas, como, por exemplo, contra as declarações do Papa, da Igreja em geral, contra as declarações dos políticos. 

Existem também outros círculos, coletivos ou associações como o CDM /CICIPCICIAP (respectivamente coletivo donne milanese, circolo di donne milanese)/Rahbar (bar mixto, com espetáculos, leituras, etc.)/ Università delle donne (associação feminista com uma participação lésbica).

Tem a famosa e anual luta pela sopa de letras que é o Gay Pride. Aqui não temos um dia das lésbicas. As ações atuais são contra o recrudescer da homofobia, transfobia, lesbofobia; contra o fascismo, a violência contra as mulheres; contra o racismo (tem aumentado exponencialmente o ódio racial e o ódio contra todos os tipos de diversidades); contra dispositivos repressivos heterossexistas, contra o autoritarismo; contra as hierarquias eclesiásticas e outras instituições que têm construído campanhas de ódio e de instigação à violência contra todas as pessoas que não entram no paradigma da “normalidade”.

As lutas internas entre os grupos são muito frequentes, e isso enfraquece não só os grupos, mas todo o movimento. De fato, um movimento lésbico não existe. Existem várias pequenas realidades que fazem muito esforço para manter-se em pé. Nos grupos maiores não existe a possibilidade de desenvolver relações de amizade. A maioria corre atrás das emergências como eu digo.

UOO – Vem com frequência ao Brasil? Pretende retornar ou já se tornou por demais italiana para tal?
RM - Não vou muito ao Brasil e, agora que minha mãe faleceu, acho que irei ainda menos. Não sei se voltarei a morar aí um dia, não se pode hipotecar assim tanto o futuro. Por enquanto, a minha idéia é continuar por aqui. 

UOO – Qual sua avaliação da política homossexual em geral, no mundo, e, em especial, a situação das lésbicas dentro dessa política?
RM - Não tenho muito que falar da política homossexual. Enquanto pensamos ou deixamos que os outros pensem que a lesbianidade não é uma questão pública, seremos sempre cúmplices do sistema. Temos interesses políticos absolutamente inéditos e diferentes de outros grupos marginalizados. Nem o discurso lésbico-feminista nos prevê, porque somos o imprevisto ou as não-nominadas na história da humanidade. Como pessoas, dividimos o mesmo planeta e temos as mesmas necessidades dos demais, mas como lésbicas políticas que querem um movimento lésbico político, precisamos absolutamente pensar outras estratégias políticas exclusivas e inéditas como nós. 

UOO – Por fim, deixe uma mensagem para nossas leitoras, algo pessoal, político, o que quiser.
RM - Deixo a seguinte poesia, de minha autoria: Eu digo que nós somos como eternas grandes mães com as tetas prontas para alimentar a todos, até o filho da outra. O nosso tempo é medido pela ampulheta. Somos detidas nessa transparência de vidro, onde nos confundimos com a areia que escoa, e nós escoamos também. Confusas na nossa mesma história, continuamos a cair continuamente, começando do começo sempre e sempre, grão por grão. Vivemos o imediato. Estamos coladas, grudadas sempre no grânulo de areia do último minuto. Perdida da nossa história a razão. Não queremos saber de ter uma história. Somos contagiadas pela escravidão da mãe, na premência que antecipa, prevê, socorre, controla e não vive. Somos sobrecarregadas por correr atrás das urgências e emergências. Tudo súbito, no imediato, como se ainda tivéssemos medo de viver. De ser. Correr como animais acuados - escapar. Quantas urgências urgem a nossa intervenção? Quantas urgências existem neste tempo de poder masculino? Quantas urgências para ficarmos distraídas e longe das nossas prioridades, dos nossos corpos, dos nossos desejos verdadeiros?” 

“A lésbica é a prova viva do “gênio” das mulheres. Todas as mulheres gostariam de acreditar no “gênio” das mulheres, mas só as lésbicas acreditam nele, se inspiram nele e o experimentam. Acreditar na mulher, através das mulheres, é um ato filosófico que só as lésbicas tiveram a disposição de realizar.” KIND SKIN MY MIND, Nicole Brossard, La Lettera Aerea, Firenze, Estro, 1989.

Entrevista originalmente publicada no site Um Outro Olhar em 24 de dezembro de 2010

Um comentário:

  1. Parabéns pela reportagem, fiquei muito satisfeita com o conteúdo. ainda sofro muito preconceito, mais já tenho me colocado diante da sociedade.

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