"Dama da noite não dá pra confiar,
Cinderela quer um sapatão pra calçar,
Noiva neurótica sonha com o noivo galã"
(Rita Lee – Elvira Pagã – Grifo meu)
Nem todas as Cinderelas querem moldar seus pés em sapatinhos de cristal e se adequarem a uma vivência sexo-afetiva heterossexual, escolhidas por um príncipe. Cinderela faz também outras escolhas...
A mulher como objeto de cultivo da própria mulher no campo emocional, afetivo e sexual é pouco levada em consideração nas interpretações e análises sobre os contos de fadas, as narrativas míticas e onde mais as relações humanas são representadas.
Os aspectos homoeróticos nas relações entre as personagens dos contos de fadas são constantemente esquecidos ou mesmo não percebidos, turvados por um pensamento intelectual e científico ideologicamente comprometido com a moral e os costumes, buscando delimitar e controlar vivências e conhecimentos que, quando exercidos de modo espontâneo e natural, livres das meras convenções culturais e sociais, poderiam ampliar a consciência e as possibilidades de escolha e realização do indivíduo e da sociedade.
Hoje, já é mais possível se ultrapassar essas viseiras claustrofóbicas, dando outras interpretações e atualizando significados ocultos que ainda bóiam, meio à deriva, no mar sombrio do inconsciente coletivo, mas se projetam, aos poucos, na transformação dos símbolos e no imaginário da sexualidade com outros valores e novas percepções da realidade, menos cerceadas pelos dogmatismos sexuais.
Nesse sentido, as lésbicas e as bruxas dos contos de fadas apresentam importantes afinidades, na medida em que se ajustam a uma representação negativa da mulher idealizada e que são marginalizadas no imaginário patriarcal, atuando como corruptoras de uma ordem social estabelecida ao desvincular, por exemplo, o erotismo e o prazer sexual da procriação.
Um exemplo é a bruxa perversa do clássico “Branca de Neve e os Sete Anões”, dos irmãos Grimm, que vive obcecada com a beleza da enteada. O espelho atua como uma espécie de alter ego “masculino” da madrasta, que em um dado momento se dá conta sobre o quanto a princesa Branca de Neve se transforma numa bela e atraente mulher. A madrasta-bruxa deseja tanto a jovem, a ponto de querer “comê-la”, e, para isso, pede a um caçador que lhe traga logo o “coração” – ícone do amor e da paixão – da enteada, para devorá-lo, adquirindo-o apenas para si. Vale lembrar o quanto um desejo e uma paixão reprimidos podem se projetar e ao mesmo tempo se recalcar na forma de um ódio mortal.
Transformada, na versão dos estúdios Disney, em uma velha de nariz pontiagudo enorme de clara conotação fálica, a bruxa seduz Branca de Neve, promovendo as delícias da sua maçã especial, o que provoca o desejo na princesa de experimentar a fruta.
A serpente à espreita na árvore, que tenta Eva com a maçã "do pecado" e a desperta para o conhecimento da sexualidade e para o erotismo, é representada pela rainha-bruxa da história que também tenta Branca de Neve, seduzindo-a com sua maçã encantada. A serpente do Éden é o principal emblema da Grande Mãe ou Grande Deusa, duramente combatida pelo patriarcado e o cristianismo, convertida, à sua dimensão negativa de mãe terrível. A madrasta é a mãe terrível da história, a antimãe, que se afina ao imaginário estereotipado da lésbica, no qual as “verdadeiras” mães jamais se tornariam lésbicas e vice-versa: ambas vampirizam o sangue menstrual, estancando a possibilidade de vida intra-uterina, utilizando-o em poções ou simplesmente deixando de utilizá-lo para a maternidade biológica obtida através de um exercício da heterossexualidade, oficializado e sacralizado no matrimônio cristão.
Na versão original dos irmãos Grimm, no final da história Branca de Neve cospe a maçã e se apaixona pelo príncipe com quem se casa. A bruxa-madrasta é castigada e morta pelos pés, através de enormes sapatos, pantufas de ferro em brasa que ela tem que calçar e dançar até morrer... Por trás do castigo da rainha, nas dimensões homoeróticas da simbologia do conto, o que parece ocultar-se é a interdição do desejo homossexual e incestuoso e, principalmente de "usurpação" do lugar do falo pela bruxa.
O fato do castigo da rainha vir pelos pés, pelos calçados, é muito significativo no imaginário da homossexualidade feminina. Os pés "ardentes" da rainha a levam a caminhar por uma paixão tortuosa, condenada ao fracasso na história. A figura que eclode da bruxa é a da mulher que deseja a mulher visceralmente para absorvê-la e assimilá-la em seu âmago, somando suas potencialidades sensuais pela via dupla e gêmea do homoerotismo feminino. A busca da realização desse desejo de fusão com o mesmo é reprimida com castigo e morte sob tortura.
Lembremos que os contos de fadas tinham um caráter de educar moralmente as crianças e de reforçar determinados padrões de comportamento, refreando as paixões.
Sapatinhos bonitinhos das chinesas.... |
...escondiam pés mutilados |
A “virilidade” da bruxa-madrasta de Branca de Neve pode ser interpretada como maligna em muitos aspectos. Ela é apresentada como a mãe má, contrária ao espírito maternal da mãe biológica de Branca de Neve, que morre por seu maior desejo: dar à luz; ao contrário, a madrasta quer matar e comer Branca de Neve para viver melhor, mais fortalecida, com a enteada abortada dentro de si. A bruxa má compõe um estereótipo: não se casa de novo, não namora, não tem filhos, vive obcecada por Branca de Neve. A Mãe da Morte, que também se oculta na história, é a lésbica, em confronto com a Mãe da Vida, que seria, por sua vez, a mulher heterossexual. Ambas apresentadas em imagens tradicionais: o estereótipo da bruxa em confronto com a idealização de modelos femininos. O fascínio com a própria imagem no espelho ou a de outra bela mulher, é outro elemento que consagra o estereótipo da homossexualidade na rainha-bruxa, que histórica e tradicionalmente tem generalizado essa orientação sexual como uma característica “narcisista”.
A bruxa se apresenta como má e sobre esse aspecto, colocado de modo maniqueísta no conto, outras qualidades, valores e atitudes da rainha, acabam sendo sutilmente condenados e repreendidos. Assim, as suas qualidades como a determinação, o espírito de iniciativa e a inteligência (manifestada, por exemplo, no seu conhecimento sobre a magia) são também repreendidos no conto com a justificativa implícita de que a sua maldade – que moldura todo um quadro moral do que uma mulher não deve ser – é que estaria sendo castigada. Ela representa a mulher fálica da história e, no imaginário sobre a sexualidade humana, a lésbica é uma das figuras mais representativas desse perfil.
A julgar pela crueldade severa com que a bruxa é castigada, sem nenhuma chance de perdão ou atenuação da pena, o que parece se refletir também nas distorções moralistas do espelho da bruxa é o medo que do espelho se espalhasse a consciência de uma sexualidade mais livre. Essa consciência expandiria a energia sexual no bote vertical da kundalini, a serpente de fogo associada à energia sexual na filosofia tântrica que, de certa forma também simbolizada pela cobra do Éden e pela bruxa em Branca de Neve, traz sempre uma maçã na boca, símbolo do conhecimento que leva a uma liberdade de escolha...
No universo imaginário dos contos de fadas não faltam outros exemplos de conteúdos homoeróticos que poderiam ser interpretados em sua rica linguagem de símbolos e de metáforas: o Lobo Mau, com a vovó viva dentro dele, que “come” Chapeuzinho; a bruxa de Rapunzel, outra madrasta obcecada pela enteada, que a quer só para si, a ponto de trancafiá-la numa torre, assim que a menina entra na puberdade, etc.
Os contos de fadas trazem representações estereotipadas e pedagógicas do feminino como passivo e do masculino como ativo, e ambos constituintes das relações heterossexuais desejadas como um objetivo para alcançar a maturidade sexual, por meio do exercício do casamento e da procriação. Nesse sentido, o que encontramos claramente por trás da simbologia da representação da bruxa, é uma negação da homossexualidade feminina, expressa no inconsciente coletivo, na medida em que a bruxa comporta uma série de elementos que encontramos na mitologia que cerca o lesbianismo, e aqui me refiro a mitologia no sentido de um conjunto de idéias falsas e de superstições. A ampliação da consciência para outras esferas da sexualidade parece ser a força motora que soma outros conteúdos, mais atualizados com as novas visões de mundo.
Só mais recentemente, descoberta pela mídia, a lésbica tem sido representada com os traços de novas personas homossexuais, como as lesbian chics, atualizando o imaginário homoerótico feminino, sejam elas bruxas, princesas, cinderelas e sapatões, enfim, mulheres que compartilham as muitas máscaras e sabores da maçã “proibida”... (16/05/05)
Paola Patassini é jornalista e desenvolveu tese de mestrado, em Comunicação e Semiótica (PUC-SP), da qual este texto é uma pequena adaptação.
Nota: Publicado originalmente no site Um Outro Olhar em agosto de 2008
Nota: Publicado originalmente no site Um Outro Olhar em agosto de 2008
Nossa,toda essa informação me fez divagar tanto,recordar de cada historia,e começar a pensar nos detalhes descritos e me fazer,amanha mesmo,procurar essas historias originais pra ler. É verdadeiramente alucinante como por traz de cada coisa existe um significado escondido!
ResponderExcluirTexto perfeitooooooooo
ResponderExcluirAdorei a explicação. Qual o nome da bruxa da Branca de Neve? Qual o nome da madrasta? Obrigada
ResponderExcluirPQP Não viaja, cara... Fumou, cheirou ou ingeriu?
ResponderExcluirNossa, simplesmente AMEI!
ResponderExcluirNada a ver...
ResponderExcluirPerfeito, faz todo sentido! Obrigada por postar isso <3
ResponderExcluirPerfeito seu texto...falarei de suas ideias em uma palestra sobre erotismo obrigada
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